Entrevista
Um Parque Nacional da Tijuca que poucos conhecem
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1 mês agoon
Por oito anos, o fotógrafo de natureza Vitor Marigo se dedicou a fotografar lados pouco conhecidos do parque nacional mais visitado do país, resultado do trabalho pode ser conferido em novo livro
Inserido no coração da metrópole carioca, o Parque Nacional da Tijuca é reconhecido por ser o parque que recebe maior número de visitantes no país e lar de um dos maiores cartões-postais da cidade: o Corcovado e o Cristo Redentor. Ainda assim, conhecer apenas estes atrativos significa uma minúscula fração de tudo que a área protegida oferece. Em 2017, o fotógrafo de natureza Vitor Marigo embarcou na missão de apresentar o público – e os próprios cariocas – ao verdadeiro Parque Nacional da Tijuca. O resultado desse trabalho de oito anos é o seu recém-lançado livro de fotografias que carrega o nome do parque.
A viagem visual pelas 216 páginas do livro e suas 319 fotografias levam os leitores a conhecer os quatro setores que compõem o parque nacional e trazem registros que vão desde os pontos turísticos e diferentes perfis de visitantes que frequentam a área protegida, até trabalhos de pesquisa – com destaque para o Projeto Refauna, que se dedica a trazer de volta espécies extintas localmente no parque e que foi acompanhado de perto por Vitor desde o princípio.
O objetivo do fotógrafo com o livro é justamente “mostrar que o parque é de todos. E o propósito do meu trabalho sempre foi o de aproximar as pessoas da natureza”, conta Vitor Marigo em entrevista a ((o))eco.
Aos 40 anos, o fotógrafo de natureza, que já teve suas fotos publicadas em veículos como National Geographic Brasil, Lonely Planet, BBC e em ((o))eco, vê nascer seu primeiro livro autoral de fotografias, com textos em português e inglês. A obra é dedicada ao seu pai, o também fotógrafo de natureza Luiz Claudio Marigo, e ao amigo Peterson de Almeida, antigo funcionário do parque carioca e um dos responsáveis por apresentar Vitor aos lados menos conhecidos da Tijuca.
Com a permissão da unidade de conservação de frequentar a área fora dos horários de visitação, Vitor teve a oportunidade de conhecer um Parque Nacional da Tijuca que não se mostra a qualquer um e fotografar dos primeiros aos últimos raios de sol em algumas das paisagens mais icônicas do Rio de Janeiro. E até mesmo explorar o parque de noite e ver a sinfonia da floresta mudar com outros personagens da fauna notívaga.
O trabalho resultou no que Vitor Marigo classifica como “o maior acervo de fotos inéditas do Parque Nacional da Tijuca” e no livro, que já pode ser encomendado online.
O fotógrafo conversou com ((o))eco na semana anterior ao lançamento do livro, realizado no dia 9 no Parque Natural Municipal da Catacumba, no Rio de Janeiro, onde inaugurou ainda uma exposição com suas fotos.
Confira abaixo a entrevista de ((o))eco com Vitor Marigo:
((o))eco: O PNT é um parque que tem um destaque enorme, é o mais visitado do país. De onde surgiu a ideia de fazer um livro de fotografias e o que você acha que esse livro traz de diferente para retratar esse parque que já foi tantas vezes retratado?
Vitor Marigo: Uma coisa que meu pai [Luiz Claudio Marigo, fotógrafo de natureza] sempre me ensinou é que quando a gente vai fazer alguma coisa, ainda mais sendo fotógrafo documental, você tem que se dedicar com profundidade.
E esse projeto tem muito a ver com o Peterson de Almeida, antigo funcionário do Parque Nacional da Tijuca [atual gestor do Parque Nacional Grande Sertão Veredas] e meu amigo. Inclusive eu dedico o livro a ele e ao meu pai. Porque o Peterson foi a primeira pessoa que eu falei da ideia do livro e ele apoiou muito. E foi através do meu contato com ele que descobri que eu, que achava que conhecia o Parque Nacional da Tijuca, na verdade só conhecia o parque de forma superficial.
Porque você achar que conhece o Parque Nacional da Tijuca porque você já foi no Corcovado, Paineiras, Parque Lage e Pico da Tijuca, é a mesma coisa que você dizer que conhece o Rio porque foi em Copacabana. E isso me deu vontade de ir mais a fundo e conhecer tudo que era possível no parque, cada ruína, cada trilha.
O livro é organizado por capítulos e setores de visitação. O primeiro capítulo “Floresta na Cidade” são fotos da floresta vista de fora, mostrando onde ela está e como ela se mistura com a cidade do Rio de Janeiro. Depois os outros capítulos são por setor, com os pontos visitáveis de cada um deles. São mais de 60 pontos documentados no livro, está bem completo. Acho que até para quem trabalha lá, o livro pode revelar coisas que ninguém conhece, porque eu fiquei oito anos investido em visitar todos os lugares possíveis, em todas as condições possíveis, já que eu tinha permissão do parque para visitar em horários alternativos. Eu espero que o livro revele um parque incrível que as pessoas não conhecem e não sabem que existe.
Outra motivação para fazer esse projeto é que o Parque Nacional da Tijuca é o lugar onde eu moro. É muito mais fácil eu fazer o livro sobre o lugar que eu moro do que sobre os Lençóis Maranhenses, por exemplo. Ser na minha cidade permitiu com que eu me dedicasse com muito mais profundidade a esse projeto. Sem falar que são imagens famosas de uma cidade famosa, é o parque mais visitado do país, então isso facilita inclusive conseguir patrocínio. Então quando eu comecei a juntar as peças, fez todo o sentido.
E o que você descobriu durante essa imersão de oito anos no parque?
Uma coisa que me fascinou conforme eu fui explorando mais o Parque Nacional da Tijuca é que ele é um parque extremamente singular. O Parque Nacional da Tijuca viveu todos os ciclos econômicos do país, o desmatamento para abrir as fazendas de café, viu a chegada da corte portuguesa indo frequentar a floresta… Tudo isso trouxe pro Parque Nacional da Tijuca um aspecto cultural e histórico que é muito difícil de encontrar em outros parques. Esse parque fala de natureza, mas também fala da história do país e da cidade do Rio de Janeiro. Você consegue ver as ruínas, fontes, captações de água… tudo isso dá um aspecto histórico único para o parque. É isso, você consegue contar muito da história do país e do Rio através do parque. Não é só natureza, bicho e paisagem, é Dom Pedro, é Barão de Escragnolle, Castro Maya, Burle Marx… Isso traz muita coisa interessante.
Houve algum ponto de toda essa história que chamou sua atenção?
Acho especialmente interessante as ruínas do Mocke [foto na capa da reportagem], que era um holandês, Alexander Van Mocke, que teve a maior fazenda de café, chegou a ter mais de cem mil pés de café e 16 edificações. Então quando você visita as ruínas, você vê todas essas edificações, tem uma jabuticabeira que revela o que devia ser um antigo pomar. E pelas pinturas antigas você tem uma dimensão da devastação, na época que aquilo era tudo café, e você via tudo da fazenda até a pedra da Gávea, era tudo pé de café. A fazenda fica ali na Serra da Carioca, na direção da Vista Chinesa. E se você seguir na trilha você passa por várias captações de água.
Você comentou que é o maior acervo de fotos inéditas do Parque Nacional da Tijuca. Que fotos são essas?
Inédita por duas razões. Tem lugares que nunca tinham sido fotografados profissionalmente e outros por questões de luz, porque eu tive permissão do parque para fotografar fora dos horários de visitação, então consegui fazer fotos de nasceres e pores do sol, de noite. Nunca ninguém tinha fotografado alguém deitado numa rede na garganta da Pedra da Gávea ou as vias de escalada da face sul do Corcovado, aquela virada para Lagoa Rodrigo de Freitas, que é a única big wall [longas rotas de escalada que levam mais de um dia de ascensão] na cidade. E aí os escaladores dormem naquela barraca que fica suspensa na parede e eu fiz umas fotos lindas do pessoal. Foram quatro inspeções até eu conseguir me familiarizar com a parede para estar seguro e confortável para fazer as fotos na quinta ida. E eu fazia o rapel da base [técnica de descida na corda] e depois tinha que subir, normalmente me içando, o que os escaladores chamam de “jumarear”.
Imagino que sejam talvez as fotos favoritas…
Sim, na verdade eu tenho duas fotos favoritas. Uma foi a que mais deu trabalho, que foi essa da escalada na face sul do Corcovado. Foi muito trabalhoso, não era só eu e os dois escaladores, junto comigo tinham mais três pessoas ajudando. Isso deu muito trabalho. E foram cinco missões até conseguir as fotos, sendo a última com pernoite. Eu comecei de tarde para fazer fotos diurnas e do pôr do sol, e no dia seguinte do nascer, e entrou uma nuvem que não estava na previsão, mas até isso deu certo porque rendeu fotos incríveis da gente escalando no meio da nuvem. Eu fiquei muito feliz com o resultado e feliz de executar bem as fotos.
E a outra, ironicamente, é a que menos deu trabalho, que foi a foto do raio caindo no Cristo Redentor. Não é uma foto fácil, mas como fotógrafo de natureza, estou acostumado a ir para o mato, passar perrengue, pegar carrapato. E essa foto eu fiz botando a câmera no tripé na varanda do meu apartamento. Eu vi que estava tendo tempestade de raios, botei a câmera fazendo fotos sequenciais, vi o enquadramento, as configurações adequadas e deixei ela lá uma hora e meia tirando fotos e fui beber um vinho [risos], no conforto da minha casa. E quando eu fui ver depois tinha conseguido duas fotos de raio, as duas estão ótimas, uma delas está no livro e a outra está na exposição. Fiquei super feliz. Então essas são as duas favoritas: uma que foi extremamente trabalhosa e a outra que não deu praticamente nenhum trabalho.
Conta um pouco mais desses bastidores do livro.
Uma das coisas mais interessantes para mim nesse processo foi estar no parque fora dos horários de visitação. Fazer trilhas de noite, ver como a fauna se transforma, como parece que tem outro “turno” de bichos. É muito legal ver essa transformação do dia para noite e como a noite tem seus próprios personagens.
Além disso, durante a pandemia de Covid, o parque fechou para visitação, mas como eu tinha a autorização de trabalho, eu pude continuar frequentando, de forma bem segura, sem contato com outras pessoas. E para ser sincero, estar no parque me salvou durante a pandemia, foi minha válvula de escape. E como estava tudo parado, as viagens e outros trabalhos, eu pude me dedicar 100% a este projeto durante esse período.
Tem também uma história engraçada de bastidor, que envolve o Peterson. Porque eu e ele somos muito viciados em café e nos orgulhamos de tomar café em tudo que é canto. E um dia eu subi uma árvore com ele, para fotografar ele instalando uma armadilha fotográfica no dossel para tentar registrar os bugios do Projeto Refauna. E nós tomamos um café lá no alto da árvore, no meio do dossel da floresta [risos].
Inclusive, é legal destacar que o livro nasce desse compartilhamento de experiências com outras pessoas. Parece um projeto muito solitário porque o livro é extremamente autoral, estou envolvido em quase todas as etapas, mas na verdade ele é fruto de muitas pessoas, até de dicas que eu ia recebendo, das pessoas que me acompanhavam. E o parque não para nunca de ter coisas novas. Acho que eu já visitei quase tudo, mas ainda tem coisa para ver e fazer. Acho que é impossível conhecer tudo.
Na seleção de fotos do livro é que você conseguiu registrar uma gama muito diferente de usos e de perfis de visitante. Desde corredor, ciclista, escalador até gestantes e pessoas com dificuldade de locomoção. Como isso foi pensado durante a produção do livro?
Uma preocupação que eu sempre tive é mostrar que o parque é de todos. Quando eu comecei a fotografar, eu percebi que se eu não tivesse essa preocupação, eu ia acabar só com a minha “patotinha”, os jovens que praticam esportes de aventura. E o parque não é só para gente. Existem inclusive trilhas adaptadas, então tem fotos de cadeirantes, de grávida, de bebê. Eu tive essa preocupação de fazer o livro mais inclusivo possível, não só de atividades, mas de perfis também, com pessoas negras, LGBTQIA+, mais velhas. Foi uma preocupação que eu tive, de mostrar que o parque é para todos, inclusive independente da idade. Porque o propósito do meu trabalho sempre foi o de aproximar as pessoas da natureza. Então se eu não deixo claro que o parque é para todos e deixo de focar em todos os públicos, eu vou aproximar só os ciclistas, os escaladores, os montanhistas, quando na verdade eu quero que idosos, grávidas, crianças, todos tenham contato com a natureza no parque.
Tem obstáculos, claro. O Parque Nacional da Tijuca deveria ser mais acessível ainda, melhor estruturado, porque ele é uma porta de entrada para natureza não só pro carioca, mas pro brasileiro. E no Setor Floresta, por exemplo, você não tem nada, só o Restaurante Esquilos, não dá para comprar um sanduíche. Eu queria ver o parque mais estruturado e ainda mais convidativo para a sociedade. É esse contato que gera encantamento. Tem uma frase que meu pai falava muito que eu amo que é “a gente só cuida do que a gente conhece”. É isso. Nós precisamos fazer as pessoas desenvolverem esse carinho e afeto pelo parque nacional.
Por falar em desafios, um dos setores do Parque Nacional da Tijuca, o Pretos Forros, não possui visitação estruturada por conflitos e problemas de segurança pública. Você conseguiu registrar algo desse setor?
O Parque tem quatro setores, o A, B e C todos têm pontos retratados no livro, mas o D, que é o Pretos Forros, não tem nenhum, justamente por esses problemas de segurança pública. Então só tem duas fotos. Uma que eu fiz da janela do avião, de cima, e outra que eu fiz de drone a partir do Pico do Perdido. Só tem essas fotos. Tanto por questões de segurança quanto para não estimular a visitação lá, porque realmente é uma área de conflito. Hoje, o uso lá, no Morro do Cardoso Fontes, é principalmente religioso, muito mais do que recreativo.
Ao longo desses oito anos de imersão, sua relação com o Parque Nacional da Tijuca mudou?
Eu acho que o que mais mudou foi minha relação de cuidado com o parque. Acho até que quando somos mais jovens somos menos responsáveis. Antigamente eu achava normal dormir na Pedra da Gávea, não me dava conta de que era invasão de unidade de conservação. Acho que esse respeitar as regras foi o que mais mudou. Hoje quando eu vejo pessoas com cachorro no parque eu dou um toque de que não pode, por exemplo. Não podemos usar o parque como o quintal da nossa casa, temos que respeitar ele como parque nacional, como unidade de conservação de proteção integral. Tem muita gente que frequenta a Floresta da Tijuca e não sabe que é uma área protegida. É importante deixar claro que é um parque nacional e que tem regras, que não pode levar cachorro, deixar lixo, subir drone, alimentar os animais. O que me leva de volta à frase do meu pai, de que a gente só cuida do que a gente conhece. Quanto mais eu fui conhecendo, mais eu fui cuidando e querendo fazer a minha parte para deixar o parque bem cuidado. E acho que ficar mais velho também ajuda [risos], porque a gente fica mais responsável.
Ficha técnica
Livro: “Parque Nacional da Tijuca”
Fotos: Vitor Marigo
Texto: Yasmin Narciso e Vitor Marigo
Projeto Editorial: Vitor Marigo
Capa Dura, 31x23cm
216 páginas
319 fotografias
O livro é realizado com recursos da Lei Rouanet e Lei do ISS, com patrocínio das empresas E.Tamussino e Paineiras-Corcovado.
Fonte: Eco Jornalismo
Entrevista
“Precisamos assumir que o que está acontecendo no mundo é a misoginia e o ódio contra as mulheres”, afirma ministra Cida Gonçalves
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1 mês agoon
16 de novembro de 2024
Responsável pela pasta das Mulheres, ministra foi entrevistada nesta sexta-feira (15) no programa Giro Social. O G20 Social antecede a Cúpula dos Chefes de Estado do G20, no Rio de Janeiro, e prossegue até sábado (16)
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, enfatizou a importância das contribuições das mulheres no G20 Social e fez uma convocação: “precisamos assumir que o que está acontecendo no mundo é a misoginia e o ódio contra as mulheres”. De acordo com Cida, nas documentações construídas pelo Grupo de Trabalho Empoderamento de Mulheres, a questão da autonomia econômica foi tratada como uma das prioridades para que mulheres possam sair da situação de violência, ter autonomia, definir o que fazer e ter o direito de ir e vir.
As afirmações e posições foram destacadas pela ministra das Mulheres, nesta sexta-feira, 15 de novembro, em participação no programa Giro Social. Cida ressaltou ainda a importância das contribuições das mulheres no Women20 (W20) e no G20 Social. “Os países que compõem o G20 fizeram o debate e trabalharam a questão da misoginia como um processo muito forte em todos os países e que traz recortes de raça, de etnia, que cada país contém e o nosso contém todos”, acrescentou.
O objetivo do G20 Social, que ocorre no Rio de Janeiro e prossegue até sábado (16), é ampliar a participação de atores não-governamentais nas atividades e nos processos decisórios do G20, que durante a presidência brasileira tem por lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”.
EMPODERAMENTO DAS MULHERES — Precisamos primeiro assumir que o que está acontecendo no mundo é a misoginia e o ódio contra as mulheres. Eu acho que o documento do G20, de empoderamento das mulheres, traz isso com muita força. Os 19 países que compõem o G20, que fizeram o debate, trabalharam essa questão da misoginia como um processo muito forte em todos os países. E trazendo os recortes necessários de raça, de etnia, que cada país contém e o nosso contém todos eles.
MULHERES NEGRAS — As mulheres negras no Brasil são as que mais morrem. São 62% das mulheres que sofrem feminicídio são vítimas de violência. Então, você tem um recorte muito forte que faz parte do racismo que está colocado também no mundo.
AUTONOMIA ECONÔMICA DAS MULHERES — A autonomia econômica é um fator primordial e primeiro para a mulher poder sair da situação de violência, ter a sua autonomia, definir o que fazer, o direito de ir e vir. Isso é fundamental. E é por isso que, no documento do G20, nós tratamos a questão da autonomia econômica como uma das prioridades. E, tratando dentro da perspectiva de que ela tenha que ter o trabalho. Que o salário seja igual ao do homem, trabalho igual. Nós temos esse desafio ainda no mundo inteiro, mesmo na Alemanha, que também já tem a lei da igualdade salarial, nós ainda temos uma diferença que está colocada igual no Brasil. Então, isso é um problema do mundo. E tem também a questão de acreditar que as mulheres podem ser empreendedoras, que elas podem estar onde elas quiserem.
MULHERES NAS CIÊNCIAS EXATAS — Temos outro desafio, que é colocar as mulheres nos espaços principalmente de exatas, da ciência e tecnologia, da matemática, da física, da química, porque as mulheres ainda estão nos lugares da questão humana e isso tem sido o potencial para colocar elas com salários desiguais.
POLÍTICA NACIONAL DE CUIDADOS — O texto, o que foi aprovado, o projeto de lei que o governo mandou, que o presidente Lula encaminhou para a Câmara dos Deputados, na nossa avaliação é um grande avanço. Nós temos condições, a partir daí, de ter políticas públicas. E o texto também foi acrescido da questão do Pacto Federativo e isso avança para as responsabilidades dos municípios, dos estados, sobre a política de cuidados. Teve algumas coisas que foram tiradas, mas a essência principal do projeto se manteve. E para nós, governo, ele é fundamental, porque agora nós vamos trabalhar com o plano, porque ele determina que nós precisamos ter um Plano Nacional de Cuidados.
DIVISÃO DO CUIDADO — Quais são os serviços e o que é que nós estamos pensando para que, de fato, as mulheres tenham mais tempo e como é que nós podemos fazer a divisão do cuidado? Porque também é importante, e aí eu quero vincular com a questão da autonomia econômica, que as mulheres não conseguem ter ascensão ao mundo do trabalho e o trabalho que elas conseguem é o de menor salário, exatamente porque ela é responsável pelo cuidado da família.
FEMINICÍDIO ZERO — A mobilização do Feminicídio Zero, ela é uma proposta para que o governo faça a sua parte, os governos façam a sua parte, que é implementar políticas públicas. E, para isso, nós estamos fazendo as Casas da Mulher Brasileira, os centros de referência, a Patrulha Maria da Penha e nós estamos investindo em tornozeleira eletrônica. Então, nós estamos fazendo várias ações de políticas públicas, mas nós precisamos que a sociedade se envolva.
PAPEL DOS HOMENS — A grande questão do feminicídio, da mobilização, é que a gente precisa falar com todas as pessoas. E nós não podemos mais falar só com as mulheres, nós precisamos falar com os homens. E a decisão de ir para os estádios, de ir para outros caminhos, é exatamente para que nós possamos trazer os homens para o debate da violência contra as mulheres. É fazer com que eles também se posicionem, porque nem todos os homens no Brasil são agressores, nem todos eles são feminicidas. Então, quem não é agressor precisa estar com a gente, precisa ser o nosso interlocutor, dizer para o seu amigo: “Não dá, não faz, é crime”. Tem que denunciar.
LIGUE 180 — A Central 180 voltou a ser um canal de receber denúncias, mas também é importante a questão de que o 180 passa também a dar informação, não só a receber denúncia, mas prestar informação e orientação. Quem não sabe o que fazer em uma situação de violência, tem um vizinho, tem um amigo, não sabe o que fazer, liga no 180. As atendentes estão treinadas, estão preparadas para te orientar, para dizer quais os passos, em que artigo da lei se enquadra. O que pode, o que não pode, isso é super importante. E o 180 é um canal fundamental, porque ele é um telefone gratuito, em qualquer lugar do país, agora também a nível internacional, para atender as brasileiras. Portanto, nós podemos atender as mulheres brasileiras do mundo inteiro.
INTERCÂMBIO ENTRE PAÍSES — Cada país tem uma realidade, a gente termina trocando um pouco mais a perspectiva do que é específico para cada país e que une todos os países. Então, uma das questões que a gente tem colocado é a qualificação dos profissionais, dos servidores públicos, para fazer o atendimento, não só nos serviços especializados de cada país, porque no Brasil a gente tem a Lei Maria da Penha, que inclui vários serviços, mas você tem outros países que não têm, que você só tem o Ministério Público. Cada país termina se adequando, mas o importante é que todos os serviços e todas as pessoas estejam preparadas para atender as mulheres em situação de violência.
AVANÇOS NA LEGISLAÇÃO — É um desafio que está colocado para o mundo inteiro, nós temos muita dificuldade com relação à questão das legislações no Brasil e fora do Brasil. E, portanto, a nossa Lei Maria da Penha é uma lei muito importante, ela é a terceira melhor do mundo, então, ela está servindo de inspiração para o mundo. Em compensação, a Lei do México do Feminicídio é muito mais avançada que a nossa. Temos diversas trocas que vão sendo feitas, vão sendo aperfeiçoadas nos debates do G20. De fato, são as trocas que permitem a nós, por exemplo, estar assinando um acordo de cooperação com o México para a troca de experiência, na questão da política de cuidados, da autonomia econômica e do enfrentamento à violência.
MULHERES NA POLÍTICA — O Brasil no G20, além de não ser o primeiro, não é o segundo, é o penúltimo, porque a gente tem vários países que já têm paridade. O próprio México tem mais de 54%, elas já estão chegando em 60%, por exemplo, de senadoras e deputadas. Então, os países que já têm a lei de paridade estão avançando. Está faltando isso, essa é a grande questão, nós precisamos fazer um debate no Brasil. Nós temos a Lei de Cotas que coloca 30% de cota para as mulheres, tanto para serem candidatas nos partidos, quanto de financiamento. Nós só estamos vendo avançar quando é obrigatório a paridade, portanto, é eleger, garantir a eleição de mulheres, colocar as mulheres nos espaços de poder.
DIREITOS REPRODUTIVOS E SEXUAIS — O Grupo de Trabalho discutiu toda a questão da saúde integral das mulheres, porque na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos, muitos países ainda têm restrições. Acho que é importante a gente dizer isso. Então, nós trabalhamos dentro da perspectiva do que eram os processos de consensos. O que foi consenso? A questão de você trabalhar a saúde integral da mulher, de uma forma que ela dê conta de todo o processo de planejamento familiar, de organização familiar, da saúde reprodutiva, de todos os processos e, principalmente, da questão da maternidade.
PEC EM TRAMITAÇÃO — No Brasil, nós temos um problema que é a questão da PEC que, na verdade, para nós, é um retrocesso. Nós temos há muitos anos, desde o Código Penal, a questão de três processos que garantem a mulher o direito ao aborto legal: no caso de violência sexual, no caso de risco de vida e no caso de anencefalia — que o STF decidiu agora. E nós sabemos que precisamos avançar muito mais na perspectiva do debate sobre essa garantia de direitos. Nós não queremos avançar para legalizar o aborto, nós não queremos fazer debate, nós queremos que o que está aí seja garantido, que a gente não perca nenhum direito.
ATENDIMENTO ÀS MULHERES — Tem a contracepção de emergência que vai evitar a gravidez, vai evitar doenças sexualmente transmissíveis e elas podem fazer o acompanhamento e tratamento psicológico para essa questão da violência. Quando nós falamos em atendimento às vítimas de violência sexual, nós estamos falando desse atendimento. Nós estamos falando do apoio. É um apoio imediato. Acolhimento que a mulher precisa, exatamente no momento que ela mais não tem o que fazer. Ela tem vergonha de dizer à família, ela tem vergonha de dizer para as amigas, ela se sente suja, ela se sente mal. É no serviço de saúde que ela vai ser acolhida, não é em outro lugar. E lá ela vai ter a garantia do anonimato e todos os procedimentos para que não dê prosseguimento a esse processo. Então, quando vamos falar que precisamos avançar e investir mais no atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, nós estamos falando de todo um atendimento preventivo para que não chegue no aborto.
Fonte: Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República
Biografia
José Vicente: do inconformismo do racismo à criação da Universidade Zumbi dos Palmares
Published
2 meses agoon
27 de outubro de 2024
Fundador e reitor da Zumbi destaca que a criação da instituição foi e continua importante na institucionalização das cotas para negros e outras ações afirmativas. Ele é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação
Oriundo de família rural e nascido em Marília, SP, o então entregador de biscoitos José Vicente se tornou advogado e doutor em educação. Há quase 30 anos é uma das pessoas mais atuantes na quebra do racismo estrutural e das desigualdades brasileiras. Os feitos de seus trabalhos têm gerado resultados expressivos. Um de seus marcos é a criação, em 2001, da Universidade Zumbi dos Palmares, na cidade de SP, o qual é o reitor (o primeiro vestibular veio em 2003).
É por conta da criação da Zumbi e de muitos outros trabalhos de impacto social que José Vicente é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação* (saiba mais no final da entrevista), da revista Educação.
Confira, a seguir, a entrevista com José, que é colunista em grandes veículos jornalísticos e membro de conselhos renomados, incluindo o conselho editorial da revista Ensino Superior.
O que te levou a fundar a Universidade Zumbi dos Palmares?
Foi a constatação e o inconformismo da exclusão do negro do ensino superior público e privado e a total ausência de qualquer tipo de debate do impacto da discriminação e do racismo nos ambientes educacionais em São Paulo e no Brasil. Na época da fundação da Zumbi dos Palmares, por exemplo, os negros representavam 2% do corpo discente da Universidade de São Paulo (USP).
A criação da Universidade Zumbi dos Palmares foi o ponto de disrupção na condução dessas agendas no nosso país.
Criada em 2001, registrada em 2002 e com seu primeiro vestibular em 2003, a Zumbi é a primeira e ainda única universidade negra do país e da América do Sul.
Foi a partir da sua constituição e experiência que as demais instituições e governo se encorajaram na institucionalização das cotas para negros e outras ações afirmativas. Nos seus 20 anos de existência, a Zumbi foi importantíssima na sustentação e consolidação do processo das ações afirmativas, nas universidades, governos, nas instituições da sociedade civil e na arregimentação e sensibilização do ambiente corporativo público e privado.
A Zumbi foi a criadora da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, o mais importante movimento empresarial de combate à discriminação no mercado corporativo, envolvendo mais de 100 empresas e instituições nessa ação. Criou também o Fórum Internacional de Equidade Racial Empresarial, o Índice de Equidade Racial Empresarial, e o primeiro Curso de Formação de Conselheiros Negros Empresariais das Américas.
Nessas duas décadas de história, como avalia o trabalho da Zumbi na inclusão da população negra no ensino superior e no mercado de trabalho?
Tendo iniciado suas atividades com o curso de administração, em 2004, ao longo da sua trajetória a Universidade Zumbi dos Palmares formou e qualificou mais de 10 mil jovens negros nos seus cursos de graduação, pós-graduação, extensão e nos cursos técnicos e livres. Com a implantação do Colégio Técnico Dandara dos Palmares, da Unibella (Universidade da Beleza), Unisamba (Universidade do Samba) e da Afrosênior (Universidade da terceira idade) e os Climáticos, a Zumbi, além de cumprir integralmente sua missão de promover inclusão, formação e qualificação dos jovens negros na educação e no ensino superior, oportuniza a toda a sociedade o acesso à educação e ao conhecimento, à preparação e à inclusão no mercado de trabalho, à inclusão produtiva, ao acesso cultural e esportivo e ao meio ambiente protegido e sustentável.
O que a Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural (Afrobrás), criada por você em 1997, tem feito?
A Afrobrás é o organismo social instituidor de todas as ações estruturantes dessa agenda de empoderamento e fortalecimento do negro brasileiro. Ela criou e instituiu a Universidade Zumbi dos Palmares, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, o Colégio Técnico Dandara dos Palmares, o Museu da História do Negro, a Virada da Consciência Negra, o Troféu Raça Negra, o Programa Televisivo Negros Em Foco, a FlinkSammpa — Festa Internacional da Literatura Negra, a Corrida da Consciência, o Concurso Estudantil Afrominuto. Além disso, realiza as ações de advocacy perante os governos, campanhas e movimentos de transformação social como a Campanha Cotas Sim, Movimento Ar: Nós Queremos Respirar, Movimento Racismo Zero, o Procon Racial, o Serviço Acolhe de Proteção ao Consumidor. As grandes ações de afirmação da negritude desde as cotas nas universidades, no serviço público, no mercado de trabalho, no congresso e nos veículos de comunicação, têm o protagonismo ou a participação relevante da Afrobrás.
Em parceria com a prefeitura, a Universidade Zumbi dos Palmares também integra o projeto do Museu da História do Negro, em São Paulo, SP. Qual a importância de se criar esses espaços?
De forma injustificada e incompreensiva, o país que escravizou os negros por quase 400 anos nunca se interessou ou se preocupou em inventariar esse histórico que compõe a trajetória histórica e evolutiva do país.
As contribuições dos negros para a formação do país e da sua cultura constituiu um legado de incomensurável valor e integra a própria essência do povo brasileiro. Ainda assim, não existe um equipamento museológico constituído com esse propósito. Não existe um Museu Nacional da Escravidão num país que escravizou mais de cinco milhões de pessoas por mais de 350 anos.
Por esses motivos entendemos que uma maneira assertiva e de grande valor para a celebração dos nossos 20 anos [da universidade], seria dotar nosso país do primeiro museu com essa finalidade e propósito. Assim, em parceria com a prefeitura e com o governo do estado, esse ano estaremos dando início à construção do Museu da História do Negro de São Paulo que, além de peças e documentos, contará com um centro cultural para proporcionar o convívio, a integração e o reforço da identidade e da cultura negra com exposições, biblioteca, cinemateca, cursos e exibições de arte, dança, cinema, música e teatro.
Devido ao racismo estrutural, o Anuário da Educação Básica e outros estudos constatam que, no ensino básico, o índice de aprendizagem em português e matemática de estudantes negros(as) é menor do que de estudantes brancos(as). Quais parcerias e ações são necessárias para diminuirmos/quebrarmos essa realidade inaceitável?
A ação mais imediata e profunda para combater a desigualdade entre negros e brancos precisa e tem que estar no espaço [escolar] e equipamentos educacionais. Ali existe um abismo que separa negros e brancos no acesso e no desenvolvimento igualitário de suas competências e habilidades educacionais, sociais e emocionais.
Seja por conta da discriminação e hostilidade dos ambientes educacionais, seja por conta da indiferença e despreparo para tratar as diversas facetas que impactam mais intensivamente os jovens negros e periféricos, os resultados finais do processo educativo sempre irão ter distorções e desiquilíbrios entre estudantes negros e brancos.
Dessa forma é indispensável que o governo, escolas e sociedade juntem esforços para enfrentar esse grande desafio. As escolas podem formar e qualificar os professores para implementarem a Lei da História do Negro e da África, por exemplo. As universidades podem fortalecer essas dimensões na formação dos futuros professores, bem como produzir estudos e pesquisas dirigidas para conhecer e desenvolver estratégias e tecnologias de superação. A sociedade pode fortalecer o debate sobre a importância de enfrentar e combater o racismo. O Congresso pode produzir e aprimorar leis para combater o racismo e fortalecer as ações afirmativas. E o governo pode construir e ampliar políticas públicas e medidas dirigidas para fortalecer o conjunto das ações em andamento.
*Prêmio Top Educação
Em sua 18ª edição, o Top é uma votação espontânea na internet realizada pela revista Educação e tem como objetivo apontar as marcas mais lembradas entre as empresas que atuam na área de educação (conheça as marcas vencedoras). Desde o ano passado, a equipe editorial da revista Educação homenageia uma entidade e uma personalidade que tem impactado o setor.
Este ano, além de José Vicente ser a personalidade homenageada, a entidade homenageada é a Fundação Itaú. Clique aqui para ler.
Em 2023, a personalidade homenageada foi Mozart Neves Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do IEA da USP e secretário de Educação do Estado de Pernambuco (2003-2007). Clique aqui para saber mais.
Já o Instituto Ayrton Senna foi a entidade homenageada do ano passado devido ao esforço de disseminar há pelo menos 10 anos aos educadores e educadoras do país o que são habilidades socioemocionais e como inseri-las nos espaços de aprendizagem. Clique aqui para saber mais.
Fonte: Revista Educação
Entrevista
Teologia da Libertação foi ‘bomba’ na Europa e até hoje impulsiona mundo pós-capitalista, diz Frei Betto sobre Gutiérrez
Published
2 meses agoon
26 de outubro de 2024
Amigo íntimo do papa Francisco, sacerdote peruano faleceu, nesta semana, aos 96 anos
Considerado pai da Teologia da Libertação, o sacerdote peruano Gustavo Gutiérrez faleceu na noite desta terça-feira (21) aos 96 anos. Ele foi o primeiro pensador a publicar uma obra trazendo uma “revolução teológica” sobre a Igreja Católica, lembra o também frade dominicano Frei Betto, jornalista, escritor e crítico teatral que chegou a ser preso duas vezes durante o regime militar (1964-1985) no Brasil.
A fé precisa ser pensada a partir da opção preferencial de Jesus, que foi a opção pelos pobres.
“Os ensinamentos da igreja eram todos pela ótica europeia, pela ótica que a gente chama de liberal e não pela ótica de libertação. E o Gustavo inverteu esse processo, ele falou: ‘a fé precisa ser pensada a partir da opção preferencial de Jesus, que foi a opção pelos pobres’”, define em entrevista ao programa Bem Viver desta quinta-feira (24).
Em 1971, período em que ditaduras militares avassalavam pensamentos críticos na América Latina, Gustavo Gutiérrez publicou a obra citada por Frei Betto, Uma teologia da libertação: história, política, salvação, traduzida para 20 idiomas.
“Olha, foi muito incômoda”, lembra o frade brasileiro sobre a publicação da obra. “Foi como explodir uma bomba destruindo aquela catedral de conceitos liberais, dirigidos pela teologia liberal da Europa, porque toda a teologia que nós respirávamos e aprendíamos nos seminários era predominantemente [baseada] em conceitos europeus, uma visão da doutrina cristã, uma visão dos evangelhos pela ótica dos opressores, dos colonizadores.”
Frei Betto analisa que o pensamento de Gutiérrez veio da origem do sacerdote, ligado ao povo quechua, tradicional de regiões andinas. O religioso peruano escreveu a obra como uma forma de evidenciar a verdadeira linhagem indígena que compõe a América Latina, servindo de alerta para o próprio continente que não tinha essa percepção aflorada na época, defende o frade.
Segundo ele, a Teologia da Libertação nunca foi completamente censurada pelo Vaticano, mas sofreu um “freio de mão”, o que retraiu seu avanço a partir dos anos 1980.
Isso, para Frei Betto, não significou uma estagnação. Pelo contrário: ele acredita que a teologia segue avançando, ganhando adeptos e cada vez mais atualizadas com as questões da sociedade, como debates de gênero, avanço tecnológico e, tambéma crise climática.
Inclusive, o religioso defende que as ideias estão mais impulsionadas do que nunca por conta de um amigo de longa data de Gutiérrez, o argentino papa Francisco.
“Papa Francisco é um homem da Teologia da Libertação, muito identificado com ela. E o Francisco foi muito amigo do Gustavo, a quem recebeu várias vezes, inclusive o hospedou na Casa Santa Marta, no Vaticano, onde o Francisco mora.”
“Ele é muito contundente ao modelo atual de capitalismo. Em nenhum momento ele usa a palavra capitalismo, mas ele sempre abre todo um horizonte para um outro mundo pós-capitalista, que ele também não chama de socialista, mas ele abre essa reflexão.”
Na entrevista, Frei Betto fala mais de sua relação com Gutiérrez e compara a trajetória do peruano com a do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT).
Confira a entrevista na íntegra
Como o senhor conheceu Gustavo Gutiérrez?
Eu conheci o Gustavo, primeiro, pelo livro Teologia da Libertação, que ele lançou em 1971 e foi editado aqui no Brasil pela editora Vozes, que é uma editora católica com sede em Petrópolis [RJ], e aquilo me encantou muito.
Depois que eu saí da prisão, eu só fui ter contato com o Gustavo pessoalmente pela primeira vez em 1980, em janeiro. Eu já estava fora da prisão quando, em São Paulo, se organizou o Encontro da Associação dos Teólogos do Terceiro Mundo.
E ali estava o Gustavo participando, e isso, então, nos aproximou muito.
Ele já era uma figura pública muito conhecida na época?
Sim, pelo fato dele ter feito uma revolução na reflexão religiosa, que a gente diz reflexão teológica.
Os ensinamentos da igreja eram todos pela ótica europeia, pela ótica que a gente chama de liberal e não pela ótica de libertação.
E o Gustavo inverteu esse processo, ele falou: “a fé precisa ser pensada a partir da opção preferencial de Jesus, que foi a opção pelos pobres.”
Então, com isso, ele formulou toda a arquitetura da fé cristã por novas categorias, a partir dos pobres e também a partir, sobretudo, da prática das comunidades eclesiais de base.
Isso foi extremamente impactante não só na América Latina, mas em todo mundo.
De onde que a gente pode dizer que surgiu todo esse ímpeto para a formulação da Teologia da Libertação?
Tem a ver com origem dele, que, assim como o Lula, é uma pessoa muito preocupada com a questão social, porque veio da miséria. O Lula foi retirante no nordestino, a mãe dele se locomoveu com oito filhos para São Paulo, tentando sobreviver.
O Gustavo tem uma origem quechua. O pai dele era assumidamente indígena e ele sempre guardou essa característica. Então ele fez essa revolução epistemológica encarando a fé cristã pela ótica dos oprimidos, que, aliás, diga-se de passagem, é uma característica dos peruanos. Porque, também no Peru, nós tivemos um teórico marxista muito importante, pouco conhecido, chamado José Carlos Mariátegui [1894-1930], que releu o marxismo a partir da ótica latina-americana, e advertiu aos comunistas de que havia uma grande falha deles em não abordar o mundo indígena.
Qual foi a reação da igreja com o início da propagação da Teologia da Libertação?
Olha, foi muito incômoda. Foi como explodir uma bomba destruindo aquela catedral de conceitos liberais, dirigidos pela teologia liberal da Europa. Porque toda a teologia que nós respirávamos e aprendíamos nos seminários era predominantemente [baseada] em conceitos europeus, uma visão da doutrina cristã, uma visão dos evangelhos pela ótica dos opressores, dos colonizadores.
E o Gustavo fez com a sua obra uma reinvensão disso.
“Não, nós temos que encarar o evangelho pela óptica dos oprimidos”, que foi a maneira como Jesus encarou a torá, que é o antigo testamento cristão. Ou seja, Jesus era um judeu, mas um judeu dissidente, um judeu questionador, tanto que foi condenado pela parte pelo poder judaico e pelo poder humano.
Como a Teologia da Libertação tem avançados nesses anos?
A Teologia da Libertação não nasceu no gabinete dos teólogos. Ela nasceu da prática das comunidades eclesiais de base. Elas eram muito incisivas em toda a América Latina, principalmente no Brasil, antes do pontificado de João Paulo II.
Ele jamais condenou a Teologia da Libertação, como jamais condenou as comunidades eclesiais de base, que são a matéria-prima da Teologia da Libertação.
Mas ele colocou um freio de mão, e isso fez refluir muito da Teologia da Libertação e das comunidades eclesiais de base.
Hoje elas não são mais tão predominantes quanto nos anos 1980, 1990, 2000, mas ela continua avançada porque, hoje, inclusive, ela aborda temas que, nos anos 1980, não eram ainda tão frequentes na nossa reflexão teológica, como a questão identitária, a questão de gênero, a questão da ecologia, a questão da nanotecnologia e das novas tecnologias digitais.
Tudo isso hoje é abordado por vários teólogos da libertação e, no Brasil, nós temos o principal ecoteólogo do mundo que é o Leonardo Boff, que associa a reflexão teológica à questão da preservação ambiental.
A chegada do papa Francisco de alguma maneira, foi uma consequência de toda essa luta que Gustavo Gutiérrez?
Sem dúvida nenhuma. Papa Francisco é um homem da Teologia da Libertação, muito identificado com ela. E o Francisco foi muito amigo do Gustavo, que recebeu várias vezes, inclusive o hospedou na Casa Santa Marta, no Vaticano, onde o Francisco mora.
Ele é muito contundente ao modelo atual de capitalismo. Em nenhum momento ele usa a palavra capitalismo, mas sempre abre todo um horizonte para um outro mundo pós-capitalista, que ele também não chama de socialista, mas ele abre essa reflexão.
Portanto, se há alguém muito identificado, é o Francisco, que, inclusive, tem muito apreço pelos teólogos da libertação. A mim, ele recebeu duas vezes, em 2014 e no ano passado, em 2023.
Podemos relacionar a Teologia da Libertação e todo esse movimento iniciado por Gustavo Gutiérrez a criação de movimentos populares no Brasil, como o MST?
Sem dúvida nenhuma. A Teologia da Libertação vem da prática das comunidades eclesiais de base, das pastorais populares, da Comissão Pastoral da Terra [CPT] que deu origem ao MST [Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra].
É a matriz disso e é muito importante a teologia da libertação num continente como a América Latina, onde a cultura predominante capilar do nosso povo é religiosa.
Se você perguntar a um camponês, a uma empregada doméstica, a uma faxineira, qual é a sua visão de mundo, certamente ela dará uma resposta em categorias religiosas.
Então, esse é o grande mérito da Teologia da Libertação. Reler a revelação cristã pela ótica dos oprimidos.
E quais seriam os maiores desafios que a gente tem hoje para avançar da Teologia da Libertação?
Um desafio que está diante do avanço da Teologia da Libertação, de incidência muito forte, são os Estados Unidos. O governo dos Estados Unidos, que é um governo imperialista, alertou que a Teologia da Libertação fazia mais mal para os seus interesses na América Latina do que o marxismo.
E daí passou a financiar as igrejas eletrônicas, essas igrejas da prosperidade, essas igrejas alienantes, essas igrejas que submetem milhões de fiéis a categorias próprias do capitalismo, de serem abnegados com seu sofrimento, ou de acreditarem na meritocracia, ou de acreditarem que você, tendo esforços empreendedoristas, vai sair da pobreza, sem nenhuma consciência de que não existe pobre, existem pessoas empobrecidas.
Todos os pobres que nós conhecemos são resultado desse neoliberalismo capitalista que priva as pessoas pela estrutura social em que vivemos, do acesso aos bens essenciais à vida. Porque a sociedade em que vivemos, ela tem como valor, entre aspas, essa palavra “valor”, a acumulação privada da riqueza. E a acumulação privada da riqueza faz com que essa riqueza não seja partilhada, compartilhada por milhões de pessoas que acabam condenadas à pobreza.
O senhor comentou que o papa Francisco prega a Teologia da Libertação e abre ideias para um sociedade pós-capitalista mas sem citar esse termo, tampouco socialismo. Isso te parece uma decisão acertada? Ou o ideal seria que ele usasse esses conceitos para ajudar na propagação de conceitos anticapitalistas?
No caso do papa Francisco, é melhor que ele continue mineramente atuando, né? Porque ele é um representante de uma religião universal, ele é uma referência com muita autoridade, para vários segmentos cristãos.
Pouca gente sabe disso, mas a igreja católica não se restringe a esse catolicismo que nós conhecemos no Brasil e no mundo ocidental. Ela tem 24 vertentes religiosas, inclusive com hábitos, costumes e visões diferentes pelo resto do mundo, principalmente no Oriente.
Então, acho que o papa Francisco é muito hábil ao não utilizar palavras que causam um certo impacto em ouvidos formados pelo preconceito.
Hoje vemos que o Brasil está se transformando em um país evangélico. Como o senhor analisa que a política vem influenciando esse processo?
É muito importante levar em conta que a cultura do povo é fortemente religiosa, saber lidar com a questão religiosa. E o pessoal de esquerda nem sempre soube lidar com isso.
Agora é importante o que eu vou dizer: é preciso evitar a confessionalização do Estado, como queria o [ex-presidente Jair] Bolsonaro. Quando, inclusive, falou que ia nomear um ministro [do Supremo Tribunal Federal] terrivelmente evangélico.
E, ao mesmo tempo, é preciso também a gente evitar a ideologização por parte da ação das igrejas. As igrejas devem estar, na minha opinião, na linha de Jesus, que é a adopção pelos pobres, mas você não pode, como padre ou pastor, direcionar os votos dos seus fiéis.
Eu preciso esclarecê-los sobre as causas dos males sociais, mas sem partidarizar. Esse equilíbrio a direita jamais consegue. A direita é que sempre partidariza as religiões e, ao mesmo tempo, confessionaliza o Estado.
E o Lula, felizmente, tem mantido esse equilíbrio. O Lula também é um adepto da Teologia da Libertação. Ele é um cristão assumido e tem tido uma muito boa relação com as igrejas em geral.
E isso é muito importante porque a religião talvez seja o sistema de sentido mais abrangente do ser humano. Porque ela não só explica a nossa origem, a origem do universo, mas, também, o que vai ocorrer com cada um de nós após a morte.
E isso nenhum outro sistema de sentido é capaz de abranger. Então é muito importante ter presente que o pensamento religioso, ele é visceral, ele é importante, ele é determinante na vida das pessoas.
O senhor comentou que a Teologia da Libertação nasce de um movimento de aproximar a América Latina de sua origem latina. Hoje vivemos uma crise climática, na qual todas as soluções apontam para a defesa destes povos originários. O senhor acredita que podemos estar vivendo uma nova fase da Teologia da Libertação frente aos atuais dilemas do mundo?
Eu vejo essa relação e o Leonardo Boff. Como teólogo da libertação, ele se equipara ao Gustavo Gutiérrez, como pai da Teologia da Libertação, e tem trabalhado muito esse tema.
Mas eu não acho que seja a teologia que vai conseguir isso. É uma visão política que vai conseguir isso, é preciso derrubar o marco temporal, demarcar as terras indígenas, valorizar a cultura e a religião dos povos originários, enfim.
Não necessariamente a Teologia da Libertação que fará isso. Isso é algo que extrapola as fronteiras da teologia para ser uma questão de direitos humanos, de cultura, de leis importantes para um país onde nós temos praticamente um milhão de indígenas assumidos.
Fonte: Brasil de Fato
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