Divergência

Para quem não enxerga o julgamento de civis pela Justiça Militar como inconstitucional, um dos argumentos é de que esse ramo não é “propriamente militar”, por ter também juízes civis em sua composição.

Esta é a visão, por exemplo, do ministro Luís Roberto Barroso, atual presidente do STF.

No julgamento do habeas corpus em 2023, por exemplo, Barroso, citou o fato de que uma lei de 2018 determinou que o julgamento de civis na Justiça Militar seja feito somente pelo juiz federal (civil) que faz parte das cortes desse ramo judicial.

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“A Justiça Militar brasileira não faz parte do Poder Executivo e não integra as Forças Armadas, sendo efetivo órgão do Poder Judiciário”, escreveu o ministro em seu voto.

No entanto, entidades como a Conectas apontam que esta regra, de que o juiz civil deve julgar sozinho os civis na Justiça Militar, não se aplica à segunda instância.

O defensor Gustavo Ribeiro explica que, a partir do momento em que o réu civil em um processo militar recorre da decisão do juiz civil, o caso será analisado por um grupo de magistrados composto também por juízes militares e sem a necessidade de formação jurídica.

“De que adianta o civil ser julgado pelo juiz federal na primeira instância se quando ele recorrer o caso vai ser analisado por um colegiado onde a maioria é militar?”, questiona Ribeiro.

O ministro Alexandre de Moraes votou no mesmo sentido que Barroso, mas destacou outro argumento.

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Para Moraes, o Código Penal Militar “não tutela a pessoa do militar, mas sim a dignidade da própria instituição das Forças Armadas” e por isso já votou tanto por ter militares julgados pela Justiça comum quanto por ter civis julgados pela Justiça Militar.

No caso do inquérito que investiga os atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, por exemplo, ele reafirmou a competência da Justiça comum para lidar com os integrantes das Forças Armadas envolvidos.

No julgamento de 2023 em que o civil pedia a declaração da incompetência da Justiça Militar, no entanto, ele manteve o caso neste ramo da Justiça com base no mesmo argumento.

“Da mesma maneira que ‘crimes de militares’ devem ser julgados pela Justiça Comum quando não definidos em lei como crimes militares, ‘crimes militares’, mesmo praticados por civis, devem ser julgados pela Justiça Militar quando assim definidos pela lei e por afetarem a dignidade da instituição das Forças Armadas”, escreveu o ministro.

A BBC News Brasil encontrou centenas de casos de civis sendo julgados por militares que chegaram à segunda instância ou ao Superior Tribunal Militar – ou seja, que não foram julgados exclusivamente por juízes civis com formação em direito.

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É o caso de uma paciente diagnosticada com transtorno bipolar e transtorno de personalidade compulsiva que se desentendeu com uma servidora em um hospital de Brasília em 2019.

Alguns dias antes do Natal, enquanto esperava por sua consulta no pronto socorro, a paciente achou que a atendente estava passando pessoas com senhas não preferenciais na sua frente.

Ela começou a reclamar, falar de forma agressiva e, segundo testemunhas, xingou a profissional.

O episódio também acabou gerando um processo criminal na Justiça Militar, apesar de tanto ela quanto a atendente serem civis.

Isso porque o hospital em que tudo aconteceu é o Hospital das Forças Armadas de Brasília, um estabelecimento militar.

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Por isso, a promotoria militar entendeu que ela cometeu um crime militar —desacato a um funcionário em lugar sujeito à administração militar —, e a Justiça Militar aceitou a denúncia.

Como funciona em outros países?

Em sua decisão de 2010, Celso de Mello afirmou que submeter civis à Justiça Militar não é uma tendência de países de perfil democrático.

Diversos chegaram a simplesmente eliminar esse ramo da Justiça, exceto em tempos de guerra. É o caso da Argentina, de Portugal e do Uruguai, entre outros.

Tratados internacionais condenam expressamente o julgamento de civis por cortes militares.

“As diretrizes do Comitê de Direitos Humanos das Nações Unidas determinam que o Estado deveria garantir que os civis acusados de cometer crimes de qualquer natureza sejam julgados por cortes civis”, diz Nachmanowicz.

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“O sistema interamericano de direitos humanos também já enfatizou isso de uma forma consistente.”

Uma decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), de 2005, por exemplo, determinou que o Chile adequasse sua legislação aos padrões internacionais e adotasse medidas para impedir, EM quaisquer circunstâncias, que “um civil seja submetido à jurisdição dos tribunais penais militares”.

A Corte IDH vai além: diz que a Justiça Militar também não é competente para investigar militares acusados de violar direitos humanos.

Nos Estados Unidos, o uso de Justiça Militar contra civis é proibido mesmo em tempo de guerra, se houver tribunais civis em funcionamento.

A corte marcial também não se aplica a crimes cometidos por militares contra civis, e não existe a figura do juiz militar no país, explica Nachmanowicz.

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Em um artigo publicado em 2017, a pesquisadora apresentou também o funcionamento da Justiça Militar na Europa.

Na Espanha, em tempos de paz, os tribunais julgam apenas delitos relacionados à defesa e segurança nacionais, aponta. Na Bélgica, os crimes cometidos em tempos de paz por militares são julgados pela Justiça comum.

“A Itália não prevê código de processo penal militar e não tem, assim como a França, magistrados militares, ainda que a França preveja um sistema específico e pouco democrático para julgamento de crimes cometidos por militares”, escreveu Nachmanowicz.

No entanto, existem países onde civis são julgados por tribunais militares com frequência.

Na América Latina, a Venezuela é o único país com esta prática, segundo a pesquisa de Nachmanowicz.

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De acordo com a Corte Interamericana de Direitos Humanos, entre 2014 e 2021, pelo menos 870 civis venezuelanos foram submetidos à jurisdição militar.

Um caso conhecido foi o do líder sindical e membro da oposição Rubén González, que, em 2020, teve condenação de cinco anos e 9 meses de prisão confirmada por uma Corte Marcial de Caracas.