Por Hugo Gutemberg
A Lei nº 14.181/2021 representa um marco jurídico e social na defesa da dignidade da pessoa humana no Brasil, ampliando as garantias dos cidadãos em situações de superendividamento. Inserida no contexto de um país em constante instabilidade econômica e agravado pelos impactos da pandemia de Covid-19, a norma reforça o compromisso do Estado de proteger os mais vulneráveis, equilibrando os interesses dos credores e o direito à subsistência digna dos devedores. Essa conquista, que se reflete nas alterações ao Código de Defesa do Consumidor (CDC) e no Estatuto do Idoso, é fruto de uma luta histórica por justiça social e inclusão financeira, sendo os principais protagonistas desta jornada as entidades de defesa dos consumidores, os sindicatos e os parlamentares do campo progressista. Quanto a Lei em questão, esta é de autoria do Deputado Federal Afonso Motta (PDT-RS).
A Lei do Superendividamento, tem como objetivos principais garantir o mínimo existencial ao consumidor, assegurando acesso aos recursos indispensáveis para uma vida digna, com proteção a direitos fundamentais como alimentação, moradia e saúde; prevenir o superendividamento por meio da promoção da educação financeira e da exigência de maior transparência nas relações de crédito, coibindo práticas abusivas; facilitar a repactuação de dívidas por intermédio de mecanismos conciliatórios que permitam a renegociação de débitos em planos de pagamento que respeitem a capacidade financeira do devedor sem comprometer os direitos dos credores; e ampliar a proteção contra práticas abusivas, estabelecendo limites à publicidade de crédito e responsabilizando fornecedores que negligenciem a análise da capacidade de pagamento dos consumidores.
Esta norma, tão bem-vinda, introduziu importantes alterações no Código de Defesa do Consumidor (CDC), promovendo avanços na proteção dos consumidores em situação de superendividamento. Entre as principais mudanças, destaca-se a inclusão de novos princípios fundamentais no artigo 4º, incisos IX e X, que reforçam a necessidade de educação financeira e a prevenção ao superendividamento, reconhecendo que relações de consumo equilibradas dependem de informação e conscientização. Além disso, foi regulamentada a renegociação de dívidas nos artigos 54-A a 54-G, estabelecendo um procedimento específico para a repactuação judicial e extrajudicial de débitos, privilegiando soluções conciliatórias. A lei também inovou ao proibir práticas abusivas, conforme os artigos 6º, inciso X, e 39, §2º, vedando assédio ou constrangimento tanto na oferta de crédito quanto na cobrança de dívidas, protegendo consumidores contra condutas opressivas de fornecedores. Outro avanço significativo foi a garantia expressa do mínimo existencial no artigo 54-A, §1º, assegurando que qualquer plano de pagamento respeite o direito do consumidor a uma vida digna, impedindo sua humilhação ou indigência. No que se refere ao Estatuto do Idoso, a alteração foi pontual, prevendo no artigo 96, §3º, que a negativa de crédito em razão de superendividamento não configura crime, consolidando a proteção dos idosos no acesso ao crédito de forma responsável.
Analisando sob uma perspectiva socioeconômica, a aprovação da Lei se deu em um momento crítico. A pandemia da Covid-19 intensificou os problemas econômicos, aumentando o desemprego, reduzindo a renda das famílias e criando um ciclo vicioso de endividamento. A situação foi agravada pelo descontrole inflacionário e pela valorização do dólar, que encareceu bens essenciais, como combustíveis, alimentos e medicamentos.
Esse cenário gerou um aumento da busca por crédito, muitas vezes concedido de forma irresponsável, levando milhares de consumidores ao superendividamento. Trabalhadores assalariados e servidores públicos enfrentaram um comprometimento excessivo de sua renda e sua margem consignável.
Apesar de representar um avanço significativo na proteção dos consumidores, a Lei nº 14.181/2021 enfrenta desafios que impactam sua efetividade e aplicação prática. Um dos principais é a implementação das medidas preventivas, como a educação financeira, que demanda esforços integrados do poder público, das instituições de ensino e da sociedade civil para conscientizar e informar adequadamente os consumidores. Outro ponto sensível é o equilíbrio entre os direitos dos credores e devedores, especialmente no tocante à proteção do mínimo existencial, que tem gerado debates sobre sua extensão e limites, exigindo da jurisprudência um olhar atento para conciliar interesses conflitantes. Além disso, há a necessidade de uma mudança cultural no mercado de crédito, onde os fornecedores devem adotar práticas mais responsáveis, sob risco de sanções administrativas e judiciais. No campo jurisprudencial, começam a surgir decisões que aplicam os novos dispositivos do Código de Defesa do Consumidor, reconhecendo a abusividade em contratos que comprometem o mínimo existencial e promovendo repactuações que asseguram a dignidade dos consumidores, mesmo que isso implique na redução temporária dos pagamentos aos credores.
Portanto, sob uma perspectiva contemporânea e humanitária, a Lei do superendividamento não apenas aprimora o CDC, mas reforça os pilares da cidadania e da justiça social. Trata-se de uma resposta necessária a um sistema econômico que frequentemente marginaliza os mais vulneráveis. Ao proteger o consumidor superendividado, o Estado reafirma seu compromisso com a dignidade humana, promovendo maior inclusão e equilíbrio nas relações de consumo.
Essa legislação é, acima de tudo, um convite à reflexão: em um país marcado por desigualdades históricas, o direito do consumo deve ser um instrumento de transformação social e redução de injustiças. A luta pela sua efetivação, portanto, deve ser contínua, abrangendo não apenas os operadores do direito, mas toda a sociedade.
*Hugo Gutemberg é Analista de Políticas Públicas e Gestão Governamental do Governo do Distrito Federal, graduado em Gestão Pública, com especialização em Direitos Humanos e Gestão de Projetos, atualmente é acadêmico do Curso de Direito.