Apesar de ter nascido livre em 1830, Luís Gama teve que conquistar a própria liberdade após ter sido vendido pelo seu pai, um fidalgo português, quando tinha oito anos de idade. Esta foi apenas a primeira vitória que o intelectual, advogado, professor, poeta e abolicionista conquistou ao longo de sua vida.
Luís Gama garantiu por via judicial a liberação de, pelo menos, 750 pessoas.
Esta aptidão para interpretar as leis da época, somado à sua defesa pela democracia fizeram dele o “inimigo número um das elites imperiais e do próprio imperador”, afirma o historiador Bruno Rodrigues de Lima.
O pesquisador lançou recentemente o livro Luiz Gama contra o Império: A luta pelo direito no Brasil da Escravidão, publicado pela editora Contracorrente. A obra de mais de 600 páginas é uma adaptação e atualização da tese de doutorado do historiador.
Bruno Rodrigues de Lima defendeu seu trabalho na Faculdade de Direito da Johann Wolfgang Goethe-Universität Frankfurt am Main e lhe rendeu o prêmio Walter Kolb de melhor tese de doutorado da Universidade de Frankfurt e a medalha Otto Hahn de destaque científico da Sociedade Max Planck.
Livro é uma adaptação da tese premiada de doutorado de Lima / Reprodução/Contracorrente
“É algo muito valioso, para quem pensa em um projeto de Brasil, pensar o projeto de Luís Gama. É um projeto abolicionista radical, sem concessões aos senhores, sem concessão e sem negociação, ou seja, é alguém que consegue ir à frente com uma bandeira tão difícil de ser levada à frente. E ele vai lá e leva a bandeira da abolição, da democracia, da terra, trabalho, direito para todos e todas”, comenta o pesquisador em entrevista ao programa Bem Viver desta terça-feira (14).
O pesquisador lembra que Gama também foi poeta, sendo o primeiro homem negro a publicar um livro deste gênero literário no país. Além disso, fundou e foi editor-chefe de um jornal intitulado Democracia. Lima comenta que por uma questão de segurança, Gama não assinava com seu próprio nome, mas com o pseudônimo Afro.
“Ele é o Afro, ele é um homem preto na São Paulo branca, e ele vai afirmar que a democracia dele é uma democracia sem pena de morte, é uma democracia socialista, palavra do gama antes da Comuna de Paris.”
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: No seu livro você demonstra como o Brasil do século 19 tinha leis que legitimavam a escravidão. No entanto, é usando destas leis que Luís Gama foi capaz de libertar mais de 750 pessoas. Como ele fez isso? Que tipo de truque, magia ou sagacidade ele tinha para furar o sistema usando as regras do próprio sistema?
Bruno Rodrigues de Lima: É um pouco de truque, um pouco de magia, um pouco de sagacidade. É Luiz Gama contra o Império.
O nome do livro sintetiza um pouco essa ideia de que ele tinha lado, sabia contra quem estava lutando, e tinha um profundo conhecimento do Império, das armas do Império, da estrutura do Império, de como ele funcionava. Por ter esse conhecimento é que ele sagazmente inventou um repertório de ferramentas para abrir caminhos de liberdade dentro do edifício escravista.
Brasil, você sabe, era a única sociedade escravista de soberania plena das Américas. Tinha escravidão em todos os cantos do Brasil, em todos os lugares. O Brasil tinha 20 províncias, tinha escravidão nas 20 províncias. O Brasil tinha 635 municípios, tinha gente escravizada nos 635 municípios. O Brasil tinha 1.449 paróquias, tinha gente escravizada em 1.442 paróquias.
Tudo isso que eu estou dizendo é segundo os dados oficiais do Censo Demográfico de 1872, quando o Luiz Gama tinha 42 anos de idade.
Esse era o Brasil do Luiz Gama. Esse era o Império do Brasil: um império de cima a baixo, de norte a sul, leste a oeste, o império da escravidão.
Ele entende o direito, entende que a escravidão era justificada, amparada, chancelada pelo direito. Com essa compreensão, ele vai conseguindo abrir caminhos para garantir liberdade para mais de 750 pessoas, através do judiciário e outras estratégias processuais à margem do judiciário também.
É por tudo isso que 150 anos depois da existência de Luís Gama estamos aqui reunidos falando da história de luta pela liberdade no Brasil que ele protagoniza.
Ele não protagoniza no sentido de que ele individualmente se sobrepõe às demais lutas, não é nesse sentido, mas é no sentido de que ele compreende o seu tempo histórico, os valores que ele luta, a causa que ele encampa e organiza, o movimento abolicionista, quando nem movimento abolicionista tinha, e vai coletivamente liderar esse processo.
É algo muito valioso, muito importante para quem pensa em um projeto de Brasil, pensar o projeto de Luís Gama, que é um projeto abolicionista radical, sem concessões aos senhores, sem concessão e sem negociação.
Ou seja, é alguém que consegue ir à frente com uma bandeira tão difícil de ser levada à frente, tão desigual eram as armas da época, tão desigual as forças forças e as correlações. Ele vai lá e leva a bandeira da abolição, da República, da democracia, da terra, trabalho, direito para todos e todas.
Isso quando o movimento abolicionista ainda nem existia.
Seu livro mostra como Luís Gama lutou contra o Império. Ele morreu antes que a República fosse declarada. No entanto, com mais de 100 anos de República, o Brasil segue reproduzindo práticas escravistas. Você acredita que Gama se desiludiria com a República brasileira?
Essa é a pergunta que eu me faço também, porque eu quero compreender esse Brasil, quero entender o que está acontecendo nele e faço isso lendo Luís Gama.
Ver que a República tal qual proclamada e os arranjos de poderes que se sucedem nas primeiras décadas, pelo menos até Getúlio, e depois mesmo durante o período de Getúlio todos os golpes e contragolpes dessa metade do século 20 até chegar agora o pacto de 1988…. O Brasil é muito jovem.
Então, se a gente perguntar, os avós dos nossos avós são contemporâneos do Luz Gama, sabe? Está muito perto. Então, a própria República é um regime político recém proclamado. A gente tem um século e pouco…
Agora, o que eu quero dizer até que as mesmas famílias que estavam lá atrás, no judiciário, por exemplo, ou nas forças armadas, são as mesmas famílias em muitos oficiais de hoje, muitos juízes de hoje.
Se a gente analisar a linhagem familiar, vamos ver que o Brasil mudou muito pouco. Se há trabalho análogo à escravidão como há e pesado se formos pensar: Tocantins, Pará, ou o bairro do Brás, em São Paulo, ou bairros da zona central das grandes cidades, do Rio, Belo Horizonte…
Você tem coisa acontecendo que o Ministério Público nem sonha em investigar, que tem obrigação funcional de investigar.
Luís Gama funda um jornal em 1867 chamado Democracia, uma palavra proibida de se enunciar no discurso político da época.
Luís Gama é aquele que vai plantar a semente da democracia no Brasil. Ele foi o redator-chefe desse jornal. Ele assina esse jornal com pseudônimo, porque não poderia assinar em nome próprio, senão o pescoço dele estaria ao alcance da milícia dos escravizadores, cafeicultores do interior paulista, por exemplo.
Mas não escondeu que era dele a autoria daquele jornal. Luís Gama vai afirmar e outras pessoas vão testemunhar que ele estava envolvido em projetos literários como o Democracia.
Lúcio de Mendonça vai dizer: “Eu conheci o Luiz Gama quando ele colaborava na imprensa com o pseudônimo Afro nos jornais de São Paulo”.
Gama não assinava em nome próprio, assinava como Afro, que é uma maneira de afirmar sem afirmar, de ocultar a autoria do nome próprio e ao mesmo tempo ele afirma a autoria.
Ele é o Afro, ele é um homem preto na São Paulo branca, e ele vai afirmar que a democracia dele é uma democracia sem pena de morte, é uma democracia socialista, palavra do gama antes da Comuna de Paris.
É uma pena que a história do movimento operário brasileiro e do movimento camponês, por exemplo, saber só agora que Luís Gama lançou um jornal chamado Democracia, com um projeto de educação inovador, de ensino laico, de educação em massa, de obrigação do Estado investir em educação de todos e todas, de meninos e meninas, de todas as faixas etárias, um projeto de alfabetização de jovens e adultos.
Ele próprio foi um professor de educação de jovens e adultos, ele próprio alfabetizou centenas e centenas de pessoas. A gente está falando de 1867, 1868, 1869, muito antes da queda da monarquia e do fim de trabalho escravizado.
A gente teve um homem preto que se definiu definiu “democrata e socialista”, que pensou a república e que foi o alvo, foi o inimigo número um das elites imperiais e do próprio imperador. É por isso que a Luís Gama contra o Império.
A sua pergunta toca nesse ponto do título do livro… E por quê esse título? Porque Luís Gama estava de um lado, o Império estava de outro. Então, se o Luís Gama estivesse hoje aqui, que é a sua pergunta, não é muito difícil imaginar quais seriam suas bandeiras.
É a bandeira da democracia, da abolição, incompleta, mambembe, capenga, esvaziada, deturpada, que o Gama certamente choraria o choro mais íntimo de sua alma e ao mesmo tempo, da indignação do revolucionário. Iria lutar para fazer a abolição acontecer.
Como é que acontece uma coisa como aconteceu em 1888 e leva 30 a 40 anos para que o preto pudesse entrar na escola, pudesse ter um ensino técnico e mais 30 a 40 para que entrasse nas universidades e mais quantos que vamos esperar até que eles entrem na magistratura?
Porque a magistratura do Brasil, as carreiras do Itamaraty, as carreiras militares de alta patente, as carreiras do judiciário, da defensoria pública, do Ministério Público, são ocupados por quem?
Nós sabemos, é estatístico, 98% são brancos. Então, o Gama não se surpreenderia com o Brasil que ele ia encontrar.
O Brasil mudou muito pouco. O Brasil, o regime de produção do Brasil de hoje, muda muito pouco do modelo de produção das grandes plantations de café do século 19.
A própria elite brasileira, muito tacanha, acha que isso aqui é uma grande fazenda. O Gama denuncia isso.
O projeto do Gama é muito sério, é um projeto de democratizar tudo isso que eu falei agora: riqueza, educação, conhecimento, terra, e que o trabalho seja algo muito mais valorizado, digno. Trabalhador precisa ser melhor remunerado.
No lançamento do seu livro na Bahia, você esteve ao lado de Mateus Aleluia e falou para ele como via ideias de Luís Gama nas música dele. Isso tem a ver com as poesias que Luís Gama escrevia ou as ideias que defendia?
Luiz Gama jogava em todas as posições, de modo como você disse também, era um poeta, era um jornalista, e, sim, um herói nacional.
E Mateus Aleluia é uma dessas raridades que dá no Brasil e que a gente tem que saber reconhecer e valorizar enquanto é tempo. Valorizar em vida.
Mateus Aleluia tem 80 anos, é um homem que foi pra Luanda, foi pra Angola, que viu a vitória do movimento de libertação de Angola. Que estava lá na luta de Angola contra o apartheid da África do Sul, ele estava lá e tem uma compreensão do panafricanismo que dá chão na Bahia, que dá chão no Brasil, e o lugar do Brasil no mundo.
Então, numa música, por exemplo, que o Mateus Aleluia fala de um novo estágio da humanidade, um estágio de alguém que tem uma utopia de um Brasil, de um mundo, sem reis e sem escravos como o Luiz Gama diria, sem patrões e sem subordinados, o Matheus Aleluia está pensando o Brasil de amanhã, um Brasil que é uma utopia, mas é essa utopia que faz a gente sonhar.
Ele vai falar de que a gente precisa de um líder popular, de alguém que pense o Brasil, que seja pragmático como [Nelson] Mandela, que traga poesia e independência como Leopold Cedarsan Singor, que tenha um sonho como Luther King e que seja um herói como Zumbi [dos Palmares].
Ele tem uma música que fala exatamente disso, que é Homem, o Animal que Fala. E eu, dialogando com ele, eu falei: “Olha, Mestre Mateus Aleluia, eu acho que esse ser humano que reúne essas qualidades de trazer poesia, independência, que lute pragmaticamente por um futuro melhor, e que tenha um sonho ao mesmo tempo uma utopia, esse homem é um Luís Gama”.
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