Então, já há garantia de que ninguém deve trabalhar mais de 8 horas por dia ou mais de 6 horas, se houver turno de revezamento, bem como de que deve haver, no mínimo, um dia de folga na semana preferencialmente aos domingos. Se trabalhar além desses limites, deve receber o valor da hora de trabalho com pelo menos 50% de acréscimo.
Bem, todas as pessoas que estão lendo esse texto sabem, por experiência própria ou de alguém próximo, o quanto essas previsões constitucionais estão distantes da realidade das relações de trabalho. As horas extras foram banalizadas, o “preferencialmente aos domingos” vem sendo entendido como um domingo por mês e quem atua em empresa que trabalha em turnos, faz jornada de 12h ou mais. Muita gente trabalha além do tempo combinado, sem receber horas extras. São súmulas, interpretações, entendimentos e alterações legislativas que, desde a década de 1990, vêm banalizando esses limites e, com isso, invadindo, com o trabalho obrigatório, cada vez mais o que sobra de tempo de vida.
Tenho escrito sobre a persistência de uma racionalidade escravista. A violência colonizadora nos constituiu como um país, cuja extração de trabalho se deu, como regra, mediante a escravização, e não o pagamento de salário. Extrair tempo sem remunerar ou exigir uma intensidade cada vez maior de trabalho, são elementos comuns aos diferentes países capitalistas. A racionalidade escravista, porém, faz com que mesmo diante de regras de limitação do tempo de trabalho, os poderes de estado se alinhem aos empregadores para encontrar subterfúgios que eliminem qualquer tipo de controle. Por isso, mesmo com o parâmetro constitucional vigente, é cada vez mais difícil encontrar alguém que trabalhe no máximo 8h por dia ou 44h por semana.
Se o que acabei de escrever é realidade, então, o problema está em outro lugar. Alterar o inciso XIII do artigo 7o da Constituição talvez não seja suficiente.
A banalização da exploração do trabalho fora dos limites estabelecidos na Constituição e na CLT se dá, especialmente, através do sistema de compensação de trabalho por folga.
Em 1988, a redação da CLT sobre a possibilidade de extrapolar a jornada máxima, em “número não excedente de 2 (duas), mediante acordo escrito entre empregador e empregado, ou mediante contrato coletivo de trabalho” (art. 59) tinha como limite “o horário normal da semana” e a jornada máxima de dez horas” (§ 2º do art. 59). Adotado especialmente nas indústrias, esse sistema de compensação estabelecia a possibilidade de jornadas de 8h48min, de segunda a sexta, com folga também aos sábados.
A Constituição, portanto, ao fixar a possibilidade de “redução ou compensação da jornada”, no inciso XIII em que fixa o máximo de 8h de trabalho por dia, tinha uma redação compatível com esse limite: todas as horas porventura trabalhadas além do limite constitucional precisavam ser compensadas por folgas no máximo dentro do mesmo mês.
A Lei 9.601 de 1998, porém, alterou o art. 59 da CLT e a compensação passou a poder ser realizada em até um ano. O pressuposto de compensar a fadiga da semana com o repouso no sábado se perdeu completamente. Não por acaso, o regime passou a ser apelidado de banco de horas, denunciando uma visão econômica do tempo de vida, colocado à disposição do empregador como mercadoria de troca.
A Lei 13.467 de 2017 (mal denominada “reforma” trabalhista) piorou ainda mais a situação. O art. 59 segue estabelecendo que o máximo de horas extraordinárias deve ser duas por dia, mas ganha dois novos parágrafos fixando a possibilidade de acordo individual escrito ou tácito, entre empregado e empregador. E inclui um art. 59-A, que autoriza “acordo individual escrito, convenção coletiva ou acordo coletivo de trabalho, estabelecer horário de trabalho de doze horas seguidas por trinta e seis horas ininterruptas de descanso, observados ou indenizados os intervalos para repouso e alimentação”. O parágrafo único ainda refere que a remuneração mensal “abrange os pagamentos devidos pelo descanso semanal remunerado e pelo descanso em feriados, e serão considerados compensados os feriados e as prorrogações de trabalho noturno”.
Doze horas, sem descanso e sem direito à dobra, se houver trabalho em domingo. Como algo assim pode ser constitucional?
Pois bem, as decisões judiciais vem chancelando regimes de 12h de trabalho, nem sempre com a folga das 36h consecutivas. E, mesmo quando reconhecem que o banco de horas não está sendo executado conforme a previsão legal, aplicam o art. 59-B. Também incluído na CLT, pela Lei 13.467, esse dispositivo refere que, se a compensação não for observada em seus limites, ou seja, se a pessoa for obrigada a trabalhar além de 12 horas sem intervalo, não haverá “repetição do pagamento das horas excedentes à jornada normal diária se não ultrapassada a duração máxima semanal, sendo devido apenas o respectivo adicional”. O parágrafo único acrescenta que a “prestação de horas extras habituais não descaracteriza o acordo de compensação de jornada e o banco de horas”.
Até mesmo as atividades reconhecidamente nocivas à saúde, que causam adoecimento, podem ser exercidas em regime de 12h (parágrafo único do art. 60, também incluído pela Lei 13.467).
O regime é flagrantemente inconstitucional.
O argumento perverso de que há folga de 36h após a jornada de 12h não consegue resistir à realidade, porque é muito mais comum encontrar pessoas trabalhando 12h por dias consecutivos (ainda que em dois empregos diferentes), do que o contrário. As atividades que mais utilizam esse regime são aquelas ligadas à limpeza, segurança e saúde. Setores que praticam baixos salários, fazendo com que boa parte das trabalhadoras e trabalhadores se obrigue a manter mais de um vínculo. Aqueles que trabalham em uma só empresa dobram turnos com frequência, o que significa a ausência real da folga de 36h, isso sem falar nas atividades, para as quais resiste-se em reconhecer proteção social: motoristas, entregadores, faxineiras, manicures, pessoas que trabalham todos os dias por 12h ou mais, para poder sustentar uma vida minimamente decente.
A experiência do Reino Unido não é isolada. Outros países já reduziram jornada e carga semanal de trabalho. Na Holanda, a média é de 29,5 horas por semana. Na Dinamarca, 32,5 horas. Na Noruega, 33,6 horas por semana. Os dados são da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) e indicam que estamos na contramão da história, reforçando a ideia de que a racionalidade escravista interdita as possibilidades de limitação efetiva do tempo de trabalho.
As propostas para a redução da jornada ou da carga semanal são necessárias e urgentes. Para que tenham efeito prático, é importante a revogação integral da Lei 13.467. É preciso voltar a considerar horas extraordinárias como extraordinárias; acabar com a possibilidade de trabalho por 12h consecutivas, venda de intervalo e relativização da importância da folga em sábados e domingos. É necessário reconhecer vínculo de emprego para quem trabalha, mesmo que em horário flexível, dirigindo, fazendo unhas ou faxinas. E impor a observância dos limites da duração do trabalho a todas as categorias, sem exceção.
De qualquer modo, pautar o tema é fundamental. Alterar a realidade adoecedora das extensas jornadas, também.
É preciso conquistar a possibilidade de ter vida além do trabalho.
* Valdete Souto Severo é doutora em Direito do Trabalho pela USP/SP, juíza do trabalho no Tribunal Regional do Trabalho da Quarta Região, professora de Direito e Processo do Trabalho da UFRGS
** Este é um artigo de opinião e não necessariamente expressa a linha editorial do Fato Novo