Ao longo de 38 anos de trabalho na Secretaria de Educação do DF, o professor José Gadelha contribuiu para formação de centenas de estudantes no Centro de Ensino Médio 9 de Ceilândia
O professor José Gadelha Loureiro, 67 anos, é um historiador com raízes fincadas na filosofia e na sociologia. Ao longo de 38 anos de trabalho na Secretaria de Educação do DF, formou uma legião de estudantes também comprometidos com a construção de uma escola pública protagonista e que forma cidadãos aptos a exercerem seus direitos, e não apenas deixá-los registrados no papel.
Gadelha, como é conhecido, orgulha-se de ter participado da formação de juízes, advogados, servidores das forças de segurança e tantos outros profissionais, mas, principalmente, de professores. Ao menos dois deles atuam na Universidade de Brasília (UnB), nos departamentos de Línguas e de Sociologia. Outros voltaram para o Centro de Ensino Médio (CEM) 9 de Ceilândia e alçaram até mesmo cargos de gestão na escola.
“Eram meninos e meninas que entraram aqui na sétima série (hoje oitavo ano). Tivemos a oportunidade, em sala de aula, de mostrar a eles a importância da educação”, afirma.
Em sala de aula e nos anos que passou na direção da escola, Gadelha sempre se recusou a limitar a prática pedagógica e a rotular estudantes como incapazes de desenvolver qualquer tarefa que fosse. Para ele, essa é uma questão filosófica: a pergunta feita a uma criança, a um adolescente ou a um adulto pode ser a mesma, o que muda é o nível de exigência com relação à resposta. A partir daí, cabe ao professor guiar o caminho pelo aprendizado. “O problema é que criou-se um conceito de normalidade, de um certo grau de resposta, que nem sempre é compatível para todos os níveis de compreensão”, avalia o especialista em filosofia e sociologia.
Quantos alunos eu tive a oportunidade de colocar para ler além das possibilidades… Alguns, na época, diziam: ‘Você é maluco! Esses meninos não têm nível’. Eu dizia: ‘Vamos na compreensão’.”E foi assim que, ainda na educação básica, os alunos do professor de história leram Raízes do Brasil, clássico de Sérgio Buarque de Holanda que interpreta o processo de formação da sociedade brasileira.
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Para Gadelha, portanto, partir da realidade do aluno, como ensina Paulo Freire e outros pensadores da educação, é importante, mas não pode ser um limitador. “Sim, eu parto, mas no sentido de arrancar o aluno daquela realidade. No sentido de pegar aquela realidade e modificá-la, vê-la em perspectiva, e não ficar limitado àquela condição.”
A história do historiador
Natural de Limoeiro do Norte, no interior do Ceará, a cerca de 200km de Fortaleza, Gadelha veio para Brasília em 1977, aos 20 anos. Tinha completado apenas o ensino fundamental e, um ano depois, conseguiu concluir todas as provas do supletivo para receber o diploma do ensino médio.
No Nordeste, ele e os sete irmãos percorriam quilômetros a pé ou no lombo de um jegue para estudar. A distância se compara à do Condomínio Privê, em Ceilândia, a Taguatinga, como bem repara o professor. “Dá uma distância boa, para estudar, para ver as coisas. Eu me lembro que meu pai comprava pão e trazia aqueles embrulhos que a gente usava até para escrever. Ou trazia um jornal e a gente fazia como se estivesse narrando uma notícia”, recorda o professor. De Monteiro Lobato a José de Alencar, aos poucos os oito filhos iam embarcando no universo da literatura. “Uma coisa muito importante que os meus pais, que mal sabiam assinar o nome, fizeram era mostrar a relevância da leitura”, orgulha-se Gadelha.
O investimento de um dos tios, Ubatan, irmão de seu pai, na educação dos sobrinhos fez toda a diferença. Ele havia se formado em medicina na Universidade Federal do Ceará (UFC) e foi o primeiro da família a emigrar para a capital federal. Em 1977, a família toda do Galego, como o tio o chamava por causa dos cabelos loiros, chegou a Brasília. “Eu falava com ele (tio), agora no mês de abril, o quanto é importante você ir constituindo aquilo que o (Pierre) Bourdieu chama de capital cultural, capital cognitivo: você entender o que você constitui. Porque a partir da família que se preocupa e quando se tem uma escola num período integral, com todo o acompanhamento, você faz democracia”, diz o professor, citando o célebre sociólogo francês.
Em 1979, foi aprovado no concurso da Secretaria de Saúde, cargo que assumiu no ano seguinte. Na mesma época, provou que olhar a realidade em perspectiva e não se ater a rótulos traz recompensas: foi aprovado no vestibular da UnB para o curso de geologia. Apesar da conquista de passar numa federal depois de se mudar do interior do Ceará, não pôde se matricular, pois não havia aulas no período noturno e deixar o trabalho era uma impossibilidade. Optou, então, por cursar história no UniCeub, o início da construção da carreira que seguiu até a aposentadoria, em janeiro deste ano.
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A aprovação no concurso da então Fundação Educacional do Distrito Federal veio em 1986. “Era dia 20 de abril, um domingo. Saiu no Correio Braziliense a lista com os convocados”, recorda-se. Durante anos, ele acumulou as funções, na Saúde e na Educação, em plantões sucessivos. A partir de 1999, passou a se dedicar apenas à sala de aula.
Um salto filosófico
Com o tempo, o repertório do professor evoluiu e ele, hoje, consegue reconhecer os pais no personagem principal da obra do filósofo francês Jacques Rancière, O mestre ignorante — Cinco lições para a emancipação intelectual. O protagonista é um docente que convida os estudantes à reflexão sem sequer falar o mesmo idioma que eles, um método filosófico que vai além da pedagogia da explicação.
“Eu tenho certeza: hoje, todo mundo explica tudo e não explica nada. Porque o ensino não está voltado para a curiosidade”, atesta o professor, numa crítica contundente aos dispositivos móveis. “Eu fico abismado quando alguém quer substituir a figura do professor por uma suposta inteligência artificial”, reclama, no único momento em que o semblante calmo e a voz pacífica parecem mudar e dar lugar à indignação.
“Você tem uma massa de informação tecnológica, mas você não tem uma massa de sabedoria. Quando eu falo que o professor é importante, é porque ele constitui diálogo. Isso aqui vai te dar o vazio (aponta para o celular). Conexão não é interação. Interação é muito mais importante.”
Gerações impactadas
Gadelha testemunhou as várias mudanças do CEM 9, única escola em que trabalhou. Quando chegou, em 1986, a instituição havia acabado de ser transformada em Centro Educacional (CED) e recebia também alunos do ensino fundamental. Só em 1995 passou a ser Centro de Ensino Médio. Teve aluno cuja família inteira passou pela sala de aula do professor.
Em 2007, assumiu a direção da escola, cargo que ocupou quase ininterruptamente até o início deste ano. Pouco tempo depois, a escola começou a aprovar grupos maiores de alunos na Universidade de Brasília e em outras instituições públicas pelo país. Com o reforço escolar aos sábados, no âmbito de projetos de preparação para o Programa de Avaliação Seriada da UnB (PAS/UnB) e o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), alcançaram resultados notáveis e consistentes ao longo dos anos. O recorde de aprovações foi de 123 estudantes.
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Alunos do CEM 9 já participaram também da final de uma conferência de matemática, meio ambiente e ciências na Índia, em 2012, e de olimpíadas de filosofia e de matemática pelo país. “Formamos um conjunto de profissionais, de pessoas, que acreditamos terem contribuído para a sociedade brasiliense e, por que não dizer, do Brasil, não sabe?”, orgulha-se Gadelha, com o sotaque cearense. “Para mim, isso é o que fica.”
Em nome da educação
Um dos desafios que Gadelha encara até hoje, junto a uma associação de diretores de escolas públicas, é a luta por uma educação pública de qualidade. Na avaliação dele, o Brasil sustenta ainda um modelo de escola improvisado, e Brasília, como capital, privilegiada, inclusive, em termos de recurso financeiro, precisa dar um exemplo melhor.
Gadelha defende que o investimento na educação seja centralizado — recursos financeiro, humano e pedagógico. “Hoje, percebo que há muita gente fazendo muita coisa, até louvável. O que não é louvável é muita gente dando pitaco na educação pública. Muita coisa se perde no meio desse caleidoscópio de boas intenções. Não bastam boas intenções, não basta falar. Precisa ser concreto”, critica o professor.
“Fazer, todo mundo diz que faz, mas encarar o dia a dia na escola pública é de uma complexidade enorme, porque a sociedade brasileira é muito desigual, e é dentro da escola onde todos os problemas sociais se concluem: a violência, a desagregação, o descaso com o jovem, com a criança”, diz ele, que é ainda um grande defensor da educação em tempo integral, com atividades esportivas, culturais e pedagógicas pensadas para os estudantes.
“Com leitura, com compreensão, com uma boa escola, com um professor, você atinge tudo. Nesse exato momento, está nascendo uma criança na Estrutural. Nesse exato momento, na área mais nobre de Brasília, está nascendo uma criança. Todo o nosso aparelho cognitivo, nossa percepção, nossa relação com o mundo é igual. O problema é a constituição do capital cultural”, conclui ele, que, ao lado da mulher, Divina Maria, cuida com zelo do capital cultural dos filhos Camilo, 34 anos, e Kauan, 21. O caçula é aluno do curso de química do Instituto Federal de Brasília (IFB).
Fundador e reitor da Zumbi destaca que a criação da instituição foi e continua importante na institucionalização das cotas para negros e outras ações afirmativas. Ele é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação
Oriundo de família rural e nascido em Marília, SP, o então entregador de biscoitos José Vicente se tornou advogado e doutor em educação. Há quase 30 anos é uma das pessoas mais atuantes na quebra do racismo estrutural e das desigualdades brasileiras. Os feitos de seus trabalhos têm gerado resultados expressivos. Um de seus marcos é a criação, em 2001, da Universidade Zumbi dos Palmares, na cidade de SP, o qual é o reitor (o primeiro vestibular veio em 2003).
É por conta da criação da Zumbi e de muitos outros trabalhos de impacto social que José Vicente é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação* (saiba mais no final da entrevista), da revista Educação.
Confira, a seguir, a entrevista com José, que é colunista em grandes veículos jornalísticos e membro de conselhos renomados, incluindo o conselho editorial da revista Ensino Superior.
José Vicente é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação (Foto: divulgação)
O que te levou a fundar a Universidade Zumbi dos Palmares?
Foi a constatação e o inconformismo da exclusão do negro do ensino superior público e privado e a total ausência de qualquer tipo de debate do impacto da discriminação e do racismo nos ambientes educacionais em São Paulo e no Brasil. Na época da fundação da Zumbi dos Palmares, por exemplo, os negros representavam 2% do corpo discente da Universidade de São Paulo (USP).
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A criação da Universidade Zumbi dos Palmares foi o ponto de disrupção na condução dessas agendas no nosso país.
Criada em 2001, registrada em 2002 e com seu primeiro vestibular em 2003, a Zumbi é a primeira e ainda única universidade negra do país e da América do Sul.
Foi a partir da sua constituição e experiência que as demais instituições e governo se encorajaram na institucionalização das cotas para negros e outras ações afirmativas. Nos seus 20 anos de existência, a Zumbi foi importantíssima na sustentação e consolidação do processo das ações afirmativas, nas universidades, governos, nas instituições da sociedade civil e na arregimentação e sensibilização do ambiente corporativo público e privado.
A Zumbi foi a criadora da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, o mais importante movimento empresarial de combate à discriminação no mercado corporativo, envolvendo mais de 100 empresas e instituições nessa ação. Criou também o Fórum Internacional de Equidade Racial Empresarial, o Índice de Equidade Racial Empresarial, e o primeiro Curso de Formação de Conselheiros Negros Empresariais das Américas.
Nessas duas décadas de história, como avalia o trabalho da Zumbi na inclusão da população negra no ensino superior e no mercado de trabalho?
Tendo iniciado suas atividades com o curso de administração, em 2004, ao longo da sua trajetória a Universidade Zumbi dos Palmares formou e qualificou mais de 10 mil jovens negros nos seus cursos de graduação, pós-graduação, extensão e nos cursos técnicos e livres. Com a implantação do Colégio Técnico Dandara dos Palmares, da Unibella (Universidade da Beleza), Unisamba (Universidade do Samba) e da Afrosênior (Universidade da terceira idade) e os Climáticos, a Zumbi, além de cumprir integralmente sua missão de promover inclusão, formação e qualificação dos jovens negros na educação e no ensino superior, oportuniza a toda a sociedade o acesso à educação e ao conhecimento, à preparação e à inclusão no mercado de trabalho, à inclusão produtiva, ao acesso cultural e esportivo e ao meio ambiente protegido e sustentável.
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O que a Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural (Afrobrás), criada por você em 1997, tem feito?
A Afrobrás é o organismo social instituidor de todas as ações estruturantes dessa agenda de empoderamento e fortalecimento do negro brasileiro. Ela criou e instituiu a Universidade Zumbi dos Palmares, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, o Colégio Técnico Dandara dos Palmares, o Museu da História do Negro, a Virada da Consciência Negra, o Troféu Raça Negra, o Programa Televisivo Negros Em Foco, a FlinkSammpa — Festa Internacional da Literatura Negra, a Corrida da Consciência, o Concurso Estudantil Afrominuto. Além disso, realiza as ações de advocacy perante os governos, campanhas e movimentos de transformação social como a Campanha Cotas Sim, Movimento Ar: Nós Queremos Respirar, Movimento Racismo Zero, o Procon Racial, o Serviço Acolhe de Proteção ao Consumidor. As grandes ações de afirmação da negritude desde as cotas nas universidades, no serviço público, no mercado de trabalho, no congresso e nos veículos de comunicação, têm o protagonismo ou a participação relevante da Afrobrás.
Em parceria com a prefeitura, a Universidade Zumbi dos Palmares também integra o projeto do Museu da História do Negro, em São Paulo, SP. Qual a importância de se criar esses espaços?
De forma injustificada e incompreensiva, o país que escravizou os negros por quase 400 anos nunca se interessou ou se preocupou em inventariar esse histórico que compõe a trajetória histórica e evolutiva do país.
As contribuições dos negros para a formação do país e da sua cultura constituiu um legado de incomensurável valor e integra a própria essência do povo brasileiro. Ainda assim, não existe um equipamento museológico constituído com esse propósito. Não existe um Museu Nacional da Escravidão num país que escravizou mais de cinco milhões de pessoas por mais de 350 anos.
Por esses motivos entendemos que uma maneira assertiva e de grande valor para a celebração dos nossos 20 anos [da universidade], seria dotar nosso país do primeiro museu com essa finalidade e propósito. Assim, em parceria com a prefeitura e com o governo do estado, esse ano estaremos dando início à construção do Museu da História do Negro de São Paulo que, além de peças e documentos, contará com um centro cultural para proporcionar o convívio, a integração e o reforço da identidade e da cultura negra com exposições, biblioteca, cinemateca, cursos e exibições de arte, dança, cinema, música e teatro.
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Devido ao racismo estrutural, o Anuário da Educação Básica e outros estudos constatam que, no ensino básico, o índice de aprendizagem em português e matemática de estudantes negros(as) é menor do que de estudantes brancos(as). Quais parcerias e ações são necessárias para diminuirmos/quebrarmos essa realidade inaceitável?
A ação mais imediata e profunda para combater a desigualdade entre negros e brancos precisa e tem que estar no espaço [escolar] e equipamentos educacionais. Ali existe um abismo que separa negros e brancos no acesso e no desenvolvimento igualitário de suas competências e habilidades educacionais, sociais e emocionais.
Seja por conta da discriminação e hostilidade dos ambientes educacionais, seja por conta da indiferença e despreparo para tratar as diversas facetas que impactam mais intensivamente os jovens negros e periféricos, os resultados finais do processo educativo sempre irão ter distorções e desiquilíbrios entre estudantes negros e brancos.
Dessa forma é indispensável que o governo, escolas e sociedade juntem esforços para enfrentar esse grande desafio. As escolas podem formar e qualificar os professores para implementarem a Lei da História do Negro e da África, por exemplo. As universidades podem fortalecer essas dimensões na formação dos futuros professores, bem como produzir estudos e pesquisas dirigidas para conhecer e desenvolver estratégias e tecnologias de superação. A sociedade pode fortalecer o debate sobre a importância de enfrentar e combater o racismo. O Congresso pode produzir e aprimorar leis para combater o racismo e fortalecer as ações afirmativas. E o governo pode construir e ampliar políticas públicas e medidas dirigidas para fortalecer o conjunto das ações em andamento.
*Prêmio Top Educação
Em sua 18ª edição, o Top é uma votação espontânea na internet realizada pela revista Educação e tem como objetivo apontar as marcas mais lembradas entre as empresas que atuam na área de educação (conheça as marcas vencedoras). Desde o ano passado, a equipe editorial da revista Educação homenageia uma entidade e uma personalidade que tem impactado o setor.
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Este ano, além de José Vicente ser a personalidade homenageada, a entidade homenageada é a Fundação Itaú. Clique aqui para ler.
Em 2023, a personalidade homenageada foi Mozart Neves Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do IEA da USP e secretário de Educação do Estado de Pernambuco (2003-2007). Clique aqui para saber mais.
Já o Instituto Ayrton Senna foi a entidade homenageada do ano passado devido ao esforço de disseminar há pelo menos 10 anos aos educadores e educadoras do país o que são habilidades socioemocionais e como inseri-las nos espaços de aprendizagem. Clique aqui para saber mais.
Engenheiro negro foi um nome importante do abolicionismo brasileiro
Quando se pensa em engenharia, uma obra de qualidade é aquela estruturalmente forte e estável, capaz de resistir aos efeitos do tempo. Esse critério bastaria para qualificar o engenheiro negro André Rebouças (1838-1898) como um dos nomes mais importantes do país.
Mas a obra dele vai além de pontes, docas, estradas de ferro e sistemas hídricos. Ele se destacou como um intelectual crítico, abolicionista, que viajou pelo mundo colhendo experiências em sociedades segregadas e projetou um Brasil onde todos pudessem ser iguais, sem distinções raciais.
O currículo credenciou André Rebouças a ser reconhecido oficialmente nesta semana como um “herói da pátria”, o que lhe garantirá um espaço no livro que reúne as principais personalidades do país.
Historiadores ouvidos pela reportagem da Agência Brasil celebraram a inclusão de Rebouças no documento. Em primeiro lugar, por entenderem que o engenheiro precisa ser mais conhecido no Brasil. Em segundo, por um resgate e revisão de sua memória, alvo de críticas por ter apoiado Dom Pedro II.
“Embora seja um reconhecimento tardio, essa inclusão no livro de heróis vem corrigir a imagem de André Rebouças como um monarquista que desistiu do país e fez um autoexílio, ao sair junto com a família imperial no fim do Segundo Reinado. Ele sai por entender que a República nasce de um movimento revanchista, de uma elite escravocrata, que não aceitou o fim da escravidão sem indenização no Brasil. E a gente teve desdobramentos muito ruins para a projeção dessa figura histórica. Tenho certeza que ajuda, em parte a corrigir isso. Existe ainda todo um trabalho a ser feito de recuperação dessa memória”, avalia Antonio Carlos Higino da Silva, historiador e autor dos livros André Rebouças no Divã de Frantz Fanon.
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“A inclusão dele no livro é um fato muito importante, porque durante muito tempo o documento só tinha a presença de heróis brancos e excluía outros grupos sociais, como negros, indígenas e mulheres. E é um passo importante nesse processo de revisão histórica, em que aqueles antes excluídos ou apresentados como passivos ou coadjuvantes da história do Brasil, agora são vistos como protagonistas e agentes históricos potentes de transformação dos 500 anos de história do nosso país”, diz o historiador Jorge Santana, professor do Instituto Federal do Paraná.
Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria
O primeiro passo é entender do que se trata o Livro dos Heróis e Heroínas da Pátria. Ele foi criado em 1992 e reúne personalidades do tidas como “protagonistas da liberdade e da democracia”, por terem dedicado parte da vida ao país. A obra também é conhecida com Livro de Aço, por ser feita com páginas desse material, e fica no Panteão da Pátria, na Praça dos Três Poderes, em Brasília.
A inscrição de um novo personagem depende de lei aprovada no Congresso. Entre os heróis e heroínas brasileiros, estão Tiradentes, Anita Garibaldi, Chico Mendes, Zumbi dos Palmares, Machado de Assis, Santos Dumont, Luís Gama e Joaquim Nabuco.
A Lei nº 15.003 , que oficializa a homenagem a André Rebouças, foi sancionada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva e publicada nesta quinta-feira, 17 de outubro, no Diário Oficial da União. As ministras Macaé Evaristo (Direitos Humanos) e Anielle Franco (Igualdade Racial), além do ministro Ricardo Lewandowski (Justiça e Segurança Pública) também assinam a medida.
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Biografia de Rebouças
André Pinto Rebouças nasceu no município de Cachoeira, na Bahia, em 3 de janeiro de 1838. Era filho de Antônio Pereira Rebouças e Carolina Pinto Rebouças. O pai, filho de ex-escravizada e de um homem branco, foi um advogado autodidata, deputado pela província da Bahia e conselheiro do imperador Dom Pedro I.
A família Rebouças veio para o Rio de Janeiro em 1846. André e o irmão Antônio, aos 15 e 16 anos, ingressaram na Escola Militar (precursora da Escola Politécnica) e formaram-se engenheiros militares em 1860. Depois de uma viagem pela Europa, (1861-1862) voltaram ao Brasil em 1863 e ficaram responsáveis por reformas nas fortalezas de Santos até Santa Catarina. Em 1864, André projetou o novo porto do Maranhão.
André participou da Guerra do Paraguai, entre 1865 e 1866, no batalhão dos engenheiros e retornou ao Rio de Janeiro por motivo de saúde. Participou das obras do porto da cidade, foi diretor das obras das novas Docas da Alfândega (na atual praça XV) e responsável pela construção das Docas de Pedro II (ao lado do Cais do Valongo).
“Esse armazém é uma grande fonte de inspiração e deve ser pensado como referência de resistência negra. O projeto é todo pensado pelo André Rebouças, em que ele se esforçou em não ter mão de obra escravizada, em constituir proteção social para os seus trabalhadores. Rebouças foi ao encontro de um projeto moderno, de um porto industrial, trazendo referências de um engajamento político e social importante”, diz o historiador Antonio Carlos Higino.
Rebouças nunca foi escravizado, pertencia a uma classe média negra e era protegido por uma rede de amigos poderosos, como a própria família imperial. Talvez isso explique um pouco o porquê de ter demorado a se colocar publicamente como um homem negro e abolicionista. Isso começou a mudar a partir da década de 1870. As viagens para a Europa e para os Estados Unidos, onde presenciou exemplos mais visíveis de discriminação e apartheid racial, foram fundamentais para impactar os projetos políticos e a subjetividade de Rebouças.
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Na década de 1880, passa a atuar ativamente no Brasil em projetos contra a escravidão. Foi um dos criadores da Sociedade Brasileira contra a Escravidão, junto com Joaquim Nabuco e José do Patrocínio, em 1880. E participou da Confederação Abolicionista (1883) e da Sociedade Central de Imigração (1883).
“Os mais sanhudos escravocratas confessam hoje publicamente: — a escravidão é um cancro. Já não há mais quem ouse negar que a escravidão é a gangrena nacional; que é a causa primária de todas as misérias e vergonhas que afligem este império; que é o obstáculo máximo à imigração, ao progresso da agricultora, da indústria e do comércio no Brasil”, escreveu Rebouças no texto de abertura do folheto “Abolição immediata e sem indemnisação”, publicado em 1883.
Monarquista, por considerar que o republicanismo brasileiro era liderado por antigos senhores de escravizados, Rebouças partiu para o exílio em 1889 junto com a família imperial. Depois da morte de Dom Pedro II em 1891, partiu para a África, para trabalhar e ajudar no desenvolvimento do continente. Foi nesse período que Rebouças passou a ver a África como “terra de origem” e a se declarar como homem negro, meio brasileiro e meio africano. Mas decepcionou-se com as dificuldades encontradas, como a pobreza decorrente da exploração de nações europeias. Morreu em Funchal, Portugal, em 9 de maio de 1898, em circunstâncias incertas, tendo sido encontrado no pé de um precipício, aos 60 anos.
Como legado para a realidade social dos negros pelo mundo, deixou textos e análises críticas, focados na construção de um país mais igualitário.
“O André Rebouças apontava como principal preocupação o 14 de Maio, ou seja, o dia seguinte à abolição. O que teria de ser feito, como a distribuição de terras, uma reforma agrária, para que os ex-escravizados pudessem ter um meio de sustento, de sobrevivência, e pudessem ser integrados à vida econômica do país”, diz o historiador Jorge Santana.
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“Ao fim movimento abolicionista e a libertação dos escravizados, André Rebouças propôs para o orçamento do ano de 1890 um aporte, parte dos recursos de orçamento, para investimento nas pessoas libertas. Ele pensou o Brasil do futuro, da proteção social, escolarização, estradas, portos, tudo que poderia esse país um lugar moderno e melhor. Ele é uma grande referência para os que querem um Brasil melhor e mais unido”, diz o historiador Antonio Carlos Higino.
Deputados Welligton Luiz (MDB) e Hermeto (MDB) são os autores da homenagem
Na próxima segunda-feira (21), às 19h, a Câmara Legislativa do Distrito Federal outorga o título de Cidadão Honorário de Brasília ao ministro do Supremo Tribunal Federal, Cristiano Zanin Martins, em sessão solene no plenário, com transmissão ao vivo pela TV Distrital (canal 9.3) e YouTube.
Os autores da homenagem, deputados Welligton Luiz (MDB) e Hermeto (MDB), destacam as contribuições do jurista e magistrado à sociedade brasileira.
Os parlamentares salientam a carreira de Zanin. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), com especialização em direito processual civil pela mesma universidade, Zanin exerceu a advocacia de 2000 a 2023, e ganhou notoriedade por sua atuação como advogado do presidente Luiz Inácio Lula da Silva nos processos da Operação Lava Jato. Ele foi empossado como ministro do STF em agosto de 2023.
Foram convidados para a sessão solene autoridades dos três poderes, em âmbito local e federal.