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Qual é para cada religião o momento do início da vida — e como cada uma lida com aborto e contraceptivos

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Essa é uma questão filosófica e científica que acompanha a humanidade desde o surgimento da consciência: quando começa a vida? Na hora da concepção, quando o óvulo é fertilizado pelo espermatozoide? No nascimento? Ou em algum momento intermediário?

Quando a religião entra na discussão, um ingrediente de fé costuma interferir no entendimento e suas implicações acabam buscando impôr regras comportamentais e morais a seus seguidores.

Em comum, a questão que geralmente baliza o debate é o momento em que a “alma” é concedida ao novo ser.

Mas as interpretações variam dentro do cristianismo e, claro, quando comparamos também com outras religiões importantes mas menos difundidas no Brasil contemporâneo.

A reportagem ouviu especialistas e traz, a seguir, os entendimentos da Igreja Católica Apóstólica Romana, de igrejas cristãs protestantes e evangélicas, das religiosidades indígenas e das de matriz africana, do espiritismo kardecista, do judaísmo e do islã.

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A partir desse entendimento, cada credo costuma traçar sua régua moral para assuntos como sexo para fins não reprodutivos, métodos contraceptivosaborto e relações homoafetivas.

Igreja Católica

Ex-coordenador do Núcleo Fé e Cultura da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e editor do jornal O São Paulo, da Arquidiocese de São Paulo, o sociólogo e biólogo Francisco Borba Ribeiro Neto argumenta à BBC News Brasil que “no caso do catolicismo, o conceito de origem da vida evoluiu com o desenvolvimento dos conhecimento sobre biologia fetal”.

“O cristianismo sempre condenou o aborto, mas na Idade Média se supunha que a alma não se incorporaria plenamente ao feto já na concepção. Com a evolução do conhecimento científico, a Igreja Católica passou a assumir que a alma é infundida no corpo já no momento da concepção”, defende ele.

Para o sociólogo, a questão parte do conhecimento científico. E, segundo ele, é por isso que a Igreja condena o aborto.

“Em primeiro lugar, acho importante fazer um a distinção para entendermos o que realmente está em debate. Ninguém pode, hoje em dia, duvidar do fato de que uma nova vida se origina na concepção. Quando o óvulo e o espermatozoide se encontram, surge um novo código genético, que corresponde a um novo ser vivo. Este é um dado científico universalmente aceito. O debate real é se esse novo ser vivo, ainda desprovido das características próprias da condição humana, pode ser considerado uma pessoa humana portadora de direitos equivalentes aos de uma pessoa já nascida”, pontua.

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“Esse caráter, pertencente constitutivamente à filosofia do direito, não interessa aos envolvidos no debate, por isso permanece camuflado”, diz Ribeiro Neto.

“Aos que defendem o direito de escolha [ou seja, o direito ao aborto], não interessa a constatação de que o feto já é um ser humano diferente, mesmo que seja apenas do ponto de vista biológico. Aos que defendem o direito à vida, não interessa destacar que pode existir uma diferença entre um novo ser vivo, no sentido biológico estrito) e uma pessoa dotada de direitos, que é uma questão filosófica e social.”

Como a Igreja entende que a alma é concedida por Deus já no momento da concepção, qualquer método abortivo é visto, nas palavras do sociólogo, como “um atentado contra o direito à vida de uma pessoa”.

Mas há um senão. “Os métodos contraceptivos não são totalmente condenados pelo catolicismo. Ele [a Igreja] concorda com os chamados métodos naturais, que monitoram o ciclo reprodutivo da mulher e indicam que se mantenha relações sexuais nos dias em que ela está infértil, para evitar a concepção, ou nos dias férteis, no caso dos casais que desejam ter filhos”, explica ele. É a chamada tabelinha.

Por outro lado, Ribeiro Neto ressalta que preservativos, dispositivo intrauterino (DIU) e a pílula são contraindicados. Assim como procedimentos definitivos, como a laqueadura e a vasectomia. “Porque não dariam espaço à livre ação de Deus”, afirma. “Todo ato sexual deve estar aberto à possibilidade da geração de uma nova vida.”

“O sexo não reprodutivo é plenamente aprovado pela Igreja, que reconhece que a sexualidade tem um valor unitivo, isso é, reforça a união entre homem e mulher. Contudo, justamente por representar essa unidade entre ambos, deve estar aberto à reprodução, que é o auge do amor entre dois seres humanos: a criação de um terceiro ser que é a fusão de ambos”, salienta ele.

Isso implica numa questão correlata: a maneira como o catolicismo vê as uniões homoafetivas. A não aceitação desses casamentos, conforme explica Ribeiro Neto, é porque, em última instância, eles “não podem, naturalmente, gerar um filho”.

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Igrejas protestantes e evangélicas

Professor na Universidade Presbiteriana Mackenzie, o teólogo, filósofo e historiador Gerson Leite de Moraes lembra que, “de maneira geral, o cristianismo, seja o católico, seja o protestante ou evangélico, trabalha com a ideia de que existe uma ordem controlada pelo criador, que comanda tudo”.

“É preciso, de alguma forma, respeitar esse doador da vida. Isso está na tradição cristã que foi inicialmente pensada pela confissão católica e também na que teve sequência com os protestantes e evangélicos”, afirma.

Ele lembra que as raízes desse entendimento estão na filosofia do teólogo Tomás de Aquino (1224-1274), que definia como “pessoa” a “substância capaz de pensar”.

“Assim, a pessoa é um ser racional, mas não que tenha recebido essa racionalidade de maneira natural, no sentido de herdar uma carga genética dos pais. O dom da vida, a racionalidade, ela é algo espiritual que foi infundida, associada a cada um por meio de um ato criador. Por isso que a vida acaba sendo um presente de Deus”, contextualiza Moraes.

“A definição se torna bastante sofisticada porque coloca Deus na parada.”

“Na tradição protestante é muito comum você escutar que os seres humanos criados são a joia da criação de Deus, por isso temos o direito de administrar o cosmos, porque somos sujeitos racionais”, completa.

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Assim, para os cristãos não católicos a ideia é a mesma: a vida começa na concepção. “Porque, em algum momento, Deus infunde a alma” diz o teólogo.

Mas se os católicos costumam se apoiar em catataus filosóficos e teológicos construídos em quase 2 mil anos, protestantes se fiam mais no que está na Bíblia por si só. E aí o principal fator a condenar o aborto é um trecho do Antigo Testamento que aparece no Salmo 139.

Ali diz que “os teus olhos [de Deus] viram o meu corpo ainda informe; e no teu livro todas estas coisas foram escritas; as quais em continuação foram formadas, quando nem ainda uma delas havia”.

“Segundo esse texto, Deus conhecia a pessoa antes mesmo de ela existir”, interpreta. “E Deus conhecida o plano eterno. Já via, com seus olhos, a substância ainda informe. Nesse sentido, a partir daquele bolo de células, da fecundação, já há uma vida, uma pessoa conhecida por Deus.”

Por outro lado, as igrejas protestantes costumam ser mais abertas ao uso de métodos contraceptivos.

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“Há uma liberdade maior. Não há problema quanto ao sexo não reprodutivo desde que dentro do casamento, porque se entende que o homem foi dado à mulher e a mulher foi dada ao homem. O sexo deve acontecer porque ambos foram abençoados por Deus numa relação legítima e essas duas pessoas estão unidas para se reproduzirem, criarem filhos mas também para se alegrarem, sentirem prazer e viverem uma vida de fidelidade sem nenhuma imposição ou restrição sexual”, comenta.

No caso do aborto, Moraes explica que tradicionalmente os protestantes sempre condenaram a prática de modo indiscriminado mas respeitavam o direito de escolha de seus fiéis, sobretudo em casos de violência contra a mulher, estupro ou mesmo quando a gestante corre risco de vida ou o feto tem alguma má-formação. “A tradição sempre foi voltada ao pró-escolha”, conta.

Isso mudou com a ascensão de grupos evangélicos fundamentalistas aliados a grupos de extrema-direita, segundo explica o professor.

“Em uma mimetização do que vem ocorrendo nos Estados Unidos desde os anos 1960, vemos no Brasil de hoje lideranças evangélicas promovendo manifestações até em frente a clínicas que praticam aborto”, comenta.

Há variações de denominação para denominação.

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“É preciso lembrar que em outras igrejas as coisas podem funcionar de forma diferente. Há igrejas pentecostais que são inclusivas, mas mesmo aí ainda prevalece algum moralismo. A igreja Cidade de Refúgio, por exemplo, é uma igreja inclusiva, mas proíbe o sexo antes ou fora do casamento. A Igreja Universal, no início deste século, não se opunha ao aborto. Passou a proibir o aborto posteriormente. Essa igreja defende o planejamento familiar com o uso de métodos contraceptivos”, exemplifica o sociólogo Edin Sued Abumanssur, professor da PUC-SP, onde lidera o Grupo de Estudos do Protestantismo e Pentecostalismo.

Sobre a origem da vida, ele toma como exemplo duas igrejas evangélicas bastante disseminadas no Brasil, a Deus é Amor e a Assembleia de Deus. “[Para ambas] a origem da vida está no momento da concepção”, esclarece.

“Para as duas igrejas o casamento é mandamento divino e as relações sexuais devem acontecer apenas no contexto do casamento. Sexo antes do casamento é proibido e implica disciplina para os faltosos. Sexo com outro que não o marido ou a esposa é adultério e implica em exclusão da igreja. O casamento é necessariamente monogâmico, heterossexual.”

Há regras claras para o matrimônio. Na Deus é Amor, casamento só deve acontecer depois dos 16 anos para mulheres e 18 anos para os homens.

As mulheres entre 16 e 18 anos só podem casar com homens de até, no máximo, 28 anos. Se tiver entre 18 e 21 anos pode se casar com homens de até 36 anos. A partir de 21 anos pode se casar com homens de qualquer idade. Há preceitos para quando é o caso de o homem ser mais novo que a mulher”, diz Abumanssur.

“Ambas as igrejas só reconhecem a família heterossexual. Qualquer relação homoafetiva é vista como pecado e passível de exclusão da igreja. Para a Deus é Amor, métodos contraceptivos são proibidos a não ser por ordem médica ou quando o marido não for crente e exigir a operação para evitar filhos.”

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“Para ambas as igrejas o aborto é proibido em qualquer circunstância, mesmo naqueles casos previstos na lei. Para as igrejas pentecostais que conheço o aborto é sempre proibido”, esclarece.

Judaísmo

De acordo com o historiador, hebraísta e rabino Theo Hotz, apresentador do podcast Torá com Fritas, são diversas as opiniões no judaísmo sobre o momento do início da vida. De acordo com a Lei Judaica, a vida humana se inicia no momento do nascimento.

“Feto e bebê são diferenciados a partir do ato do nascimento. Enquanto ainda na fase uterina, o feto é considerado como vida em potencial, mas ainda parte da mãe, como se fosse um órgão dela. Tanto os antigos sábios do Talmud, quanto os legisladores da Lei Judaica entendem que, após a cabeça do bebê ter saído, ele é considerado um ser humano completo. Outras autoridades entendem que somente após a maior parte do bebê ter saído ele deve ser considerado como um ser humano completo”, esclarece Hotz.

A base do entendimento é bíblica e remonta ao livro do Gênesis, parte das escrituras tanto do judaísmo quanto das denominações cristãs. Ali diz que “Deus então soprou em suas narinas o fôlego da vida, e ele se tornou um ser vivente”.

“Assim, a respiração natural é vista como base para a determinação de quando a vida começa e termina. Como dentro do útero, cercado pelo líquido amniótico, o feto é incapaz de respirar, seu potencial de vida só é realizado a partir do momento em que tem contato com o ar e pode respirar por si só e naturalmente”, explica o historiador.

Ele ressalta, contudo, que não há um consenso. A cabalá, ou seja, a mística judaica, tem o entendimento de que a vida se inicia a partir da entrada no quarto mês de gestação. “Daqui, por exemplo, surge o costume de somente se anunciar uma gravidez após a compleição de três meses de gestação”, conta.

“Há quem diga, porém, que tal costume se desenvolveu por puro empirismo, após a observação do fato de que era muito comum se perder uma gravidez durante o primeiro trimestre.”

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Segundo o historiador e rabino, a visão judaica não condena o aborto. “Entendendo a respiração natural como a realização total do potencial de vida humana, o judaísmo entende que a gravidez pode ser interrompida a qualquer momento antes do nascimento. Desse modo, o aborto não é visto como algo fundamentalmente proibido pela Lei Judaica”, contextualiza.

“Contudo, é importante compreender que o judaísmo, embora não proíba o aborto, tampouco o incentiva. Autoridades legais e mestres da filosofia judaica entendem que o objetivo do feto é realizar o seu potencial de vida, assim, a gravidez não deveria ser interrompida por qualquer motivo”, ressalta ele.

Um dos motivos vistos como razoáveis para a prática é quando a gestante corre riscos. “Neste caso, entende-se a mãe como potencial já realizado versus o feto potencial ainda não realizado. Deste modo, a vida da mãe estaria acima do potencial de vida fetal”, afirma.

Outros casos aceitáveis são quando a viabilidade da vida do potencial é baixa, como no caso de fetos com malformações e outras anomalias. “[Nestas situações], o aborto pode ser recomendado, não incorrendo em qualquer culpa religiosa sobre os progenitores”, diz Hotz.

O rabino explica que métodos contraceptivos são, “de maneira geral, não recomendados pelo judaísmo”. “Mas as autoridades rabínicas são incentivadas a analisar caso a caso, podendo vir a autorizar seu uso ou recomendá-lo no caso, por exemplo, de uma família pobre, que não tenha condições de criar um filho naquele momento da vida”.

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Neste caso o fundamento é o mesmo, ou seja, da precária viabilidade da vida cujo potencial venha a ser realizado.

“De todo modo, num caso assim, muitas vezes não se recomenda o método contraceptivo, mas sim, que se entregue a criança nascida para adoção”, comenta.

Islã

O islã tem o entendimento de que a vida começa 120 dias depois da concepção. Isto está presente no Corão, o livro sagrado da religião.

“Tem uma surata que fala da formação [do feto]. Primeiro, o coágulo, depois o pedaço de carne, os ossos”, explica a antropóloga Francirosy Campos Barbosa, professora na Universidade de São Paulo (USP).

No texto, há o chamado período do esperma, de 40 dias, seguido pela sua transformação em coágulo, outros 40 dias, e então ao pedaço de carne, mais 40 dias.

“Então Deus manda um anjo até a criatura que está sendo gestada e assopra a vida. Esse anjo é ordenado a registrar para essa criança o sustento, as ações, quando vai morrer, se será uma pessoa bem-aventurada ou não… Esses pontos já se decidem ali, nesse momento em que a criança recebe a vida”, afirma Barbosa.

Essa crença implica em duas consequências. A primeira é que o aborto, para o islã, é algo terminantemente proibido. Mas há o tal prazo de 120 dias. “Se pensarmos claramente, não é ainda vida [para os que professam essa fé], então não teria determinados impedimentos”, diz a antropóloga.

Contudo, mesmo assim, evita-se, conforme ressalta a professora. Porque não há um consenso entre os sábios da religião. “Há especialistas que dizem que se o aborto ocorre antes [dos quatro meses], não há problemas. Mas há quem discorda. O mais comum é aceitar nos casos em que a mãe está correndo risco de vida”, explica.

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Sobre métodos contraceptivos, Barbosa conta que dentro do islã não há problemas desde que não sejam permanentes. Ou seja: laqueadura e vasectomia não são aceitos, mas os outros métodos não são vistos como problemáticos. “Na época do profeta [Maomé ou Muhammad, como preferem seu seguidores], se fazia uma prática conhecida como coito interrompido. Que ele e seus companheiros já realizavam”, diz Barbosa.

Espiritismo kardecista

Como se trata de uma doutrina reencarnacionista, a linha espírita kardecista parte da ideia “de que a alma é imortal e a gente tem várias existências, várias vidas”, como explica a historiadora e socióloga Célia da Graça Arribas, professora na Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e autora do livro ‘Afinal, Espiritismo é Religião?’.

“O princípio da vida, então, é pensado como uma espécie de evolução. Passamos por algumas existências, das plantas aos animais, até chegarmos aos seres humanos. Mas a ideia é que ninguém nunca regride”, contextualiza. “O fundo da teoria espírita é a ideia da evolução.”

A pesquisadora salienta que, embora o espiritismo seja praticado em geral por pessoas de classes sociais mais elevadas do que a que compõe a massa de evangélicos neopentecostais no Brasil, a intransigência à possibilidade do aborto é uma pauta que une esses dois grupos.

“Embora haja espíritas progressistas que pensam no aborto a partir das lentes da saúde pública, o que predomina é uma visão muito forte contra qualquer tipo de aborto. O pensamento hegemônico [dentro da doutrina] é conservador, então eles são completamente contrários à descriminalização do aborto”, diz.

No entendimento deles, impedir o término de uma gestão é impedir a vinda de um espírito programado para reencarnar. “Alguém que tem objetivos, provas a cumprir na Terra. Ou seja, o aborto seria uma ação contrária às leis naturais e divinas. É um discurso alinhado com a perspectiva católica e evangélica, nesse sentido”, argumenta a pesquisadora.

De modo geral, os espíritas kardecistas não se opõem aos métodos contraceptivos, desde que as relações sexuais sejam feitas com consentimento e responsabilidade. “A partir da ideia de uma parceria fixa e do amor”, esclarece Arribas. A exceção é o DIU. “Porque como ele não impede a fecundação, mas sim a absorção do zigoto no colo do útero para o começo da gestação, para muitos espíritas ali já estava implementado o espírito reencarnante”, diz.

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Uma informação interessante a respeito é que um dos proponentes do estatuto do nascituro, de 2007, foi o então deputado federal Luiz Carlos Bassuma, que segue o espiritismo. “[Trata-se de uma proposta que] prevê que o feto tem direito à vida, à integridade física, a partir do momento em que é concebido. Na prática, qualquer aborto seria proibido, inclusive em casos de estupro”, pontua a professora.

Povos originários

Dentre os tantos povos indígenas brasileiros, são muito diversas as crenças sobre o momento em que a vida se inicia. E, atualmente, esses entendimentos muitas vezes estão contaminados com preceitos cristãos, seja oriundos de missionários católicos, seja de evangélicos.

Professor na Universidade Federal do Amapá (Unifap), o historiador e antropólogo Giovani José da Silva explica que essas posturas costumam variar conforme “as narrativas míticas de cada povo”.

“Há os que acreditam que a alma adentra o corpo no momento do nascimento e aqueles que acreditam que o espírito já esteja presente no momento da fecundação. Os que sofreram influência religiosa cristã costumam entender que um feto de algumas semanas já é um ser vivo”, argumenta.

“E isso, claro, vai influenciá-los a aceitar ou não o aborto.”

Ele cita, contudo, pesquisas realizadas na etnografia dos kadiwéus mbayá-guaikurú e os classifica como exemplos de uma população que via com naturalidade a prática do aborto. “Seus ancestrais muitas vezes abortavam e, no lugar dessa criança abortada, costumavam raptar uma criança de outro grupo”, comenta.

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Ao longo de quase 10 anos, nos anos 2000, Silva participou da organização de oficinas de educação sexual em comunidades indígenas, principalmente visando a conter a propagação de infecções sexualmente transmissíveis. Ele constatou que diversos métodos contraceptivos e receitas abortivas, muitos deles ligados ao uso de plantas específicas, eram utilizados pelas mulheres sem nenhum problema ou tabu.

“Há, nos povos [indígenas] a ideia e o sentimento de se fazer sexo para fins não reprodutivos, de dar prazer aos parceiros”, comenta. “Evidentemente que a entrada em cena de religiões cristãs, sobretudo as evangélicas neopentecostais, com um discurso bastante moralista, provocou mudanças de comportamento.”

Candomblé

De acordo com o sociólogo, antropólogo e babalorixá Rodney William Eugênio, autor de, entre outros livros, A Bênção aos Mais Velhos: Poder e Senioridade nos Terreiros de Candomblé, não existe na religião africana nada que impeça a interrupção voluntária de uma gravidez ou a decisão de não engravidar.

“Não há juízo moral no candomblé, sobretudo essa moral restritiva normalmente vinculada às religiões cristãs. Cada um exerce o direito e a responsabilidade sobre seu próprio corpo”, salienta ele.

“Não há nenhum fundamento que condene o aborto, muito menos os métodos contraceptivos. Aliás, compreender o aborto dentro de um contexto histórico nos ajuda a incluir a prática como uma condição diante do contexto de violência do processo de escravidão e da vulnerabilidade social que seguiu no pós-abolição. Usar qualquer história sagrada dos orixás para criticar o aborto, além de leviano, seria uma grande hipocrisia. São as mulheres negras as maiores vítimas de procedimentos mal-sucedidos. Portanto, deve ser uma preocupação dos terreiros que abortos, quando necessários, possam ser feitos sem riscos e com a devida assistência.”

No entendimento do candomblé a vida de cada um começa antes mesmo do nascimento na Terra.

“Resumidamente, de acordo com as histórias sagradas dos orixás, cada um de nós escolhe no Orun, o mundo das divindades e ancestrais, um Ori, ou seja, cabeça, mente, consciência, para nascer no Aiyê, a Terra. Antes do nosso nascimento nosso Ori escolherá um Odu, o caminho, destino, e deve testemunhá-lo diante de Exu Onibodê Orun, o guardião da grande encruzilhada que separa o Orun do Aiyê, e Orunmilá, o senhor dos oráculos”, narra.

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“Dizemos tudo que vamos realizar: vitórias, desafios, conquistas, dificuldades, encontros, guerras e até o tempo em que vamos ficar na Terra. Quando atravessamos o portal, Exu nos faz esquecer de tudo para que tenhamos direito ao arbítrio”, prossegue.

“Sendo assim, o Ori de cada pessoa já determinou como será sua vida, seu tempo no Aiyê e como será sua morte, inclusive no caso de mortes prematuras. Nós escolhemos a quem nosso destino vai se atrelar, em qual família nascermos, quem serão nossos pais e de que forma morreremos.”

Sobre os que têm esse nascimento interrompido, também há uma explicação. “No Orun há uma sociedade dos Abikus, que são os predestinados a não cumprir seu odu na Terra, nascendo mortos ou nem chegando a nascer”, esclarece Eugênio.


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Conheça 5 mitos e verdades sobre alimentação e enxaqueca

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Neurologista explica que a causa da enxaqueca não está no prato. A alimentação pode desencadear ou piorar as crises

Cerca de 30 milhões de pessoas sofrem de enxaqueca no Brasil (aproximadamente 15% da população total). Ao contrário do que muita gente pensa, a alimentação não é motivadora da doença; a enxaqueca tem causa hereditária. Porém, substâncias presentes em alguns alimentos podem desencadear ou piorar uma crise.

A neurologista Thaís Villa, especialista no diagnóstico e tratamento das dores de cabeça e da enxaqueca, lista 5 mitos e 5 verdades sobre a ligação entre os alimentos e a enxaqueca. Confira:

  1. É mito! A enxaqueca pode ser causada pela alimentação. Nenhum alimento causa enxaqueca, essa é uma doença crônica do cérebro de causa hereditária. A enxaqueca não tem cura, o tratamento correto vai ajudar a controlar os sintomas, que podem ser muitos e variados;
  2. Verdade: alimentos estimulantes podem piorar uma crise de enxaqueca. Alguns alimentos contêm substâncias que são estimulantes para o cérebro e podem tanto ser um gatilho para as crises de enxaqueca como também podem cronificar a doença, aumentando a frequência de crises, a intensidade e a duração delas. Exemplos: café, cacau (chocolate), cupuaçu, fruto do guaraná e a erva mate. A cafeína presente nesses alimentos possui efeito estimulante e analgésico, mascarando os sintomas e cronificando a doença;
  3. Verdade: alimentos termogênicos, como pimentas mais fortes, gengibre, canela, cúrcuma devem ser evitados porque também são estimulantes;
  4. Mito: refrigerantes estão liberados! A cola e o guaraná são estimulantes e devem ser evitados;
  5. Verdade: cuidado em restaurantes de comida japonesa. O problema está no consumo do molho shoyu que contém glutamato monossódico, um estimulante cerebral;
  6. Verdade: temperos prontos (em pó), biscoitos e salgadinhos com sal são inimigos da enxaqueca, porque contém glutamato monossódico. É importante verificar a existência de mais esse estimulante do cérebro na tabela nutricional do alimento;
  7. Verdade: a cafeína está na maioria dos analgésicos utilizados para dor de cabeça, sintoma mais conhecido da enxaqueca (mas não o único!). O uso excessivo desses medicamentos pode desencadear sérias consequências para o estômago e o intestino, além de cronificar a enxaqueca e provocar mais crises de dor de cabeça;
  8. É mito que o glúten presente no trigo e na cevada – e também a lactose do leite – causa enxaqueca. Nenhum alimento causa a doença, que é hereditária. Algumas pessoas possuem outras predisposições ou mesmo intolerância a alguns alimentos e o corpo pode reagir de maneira exacerbada, mas não são gatilhos para a doença;
  9. Mito: a pessoa com enxaqueca não deve comer doces. O açúcar não precisa ser retirado da dieta do paciente, não é causa de enxaqueca. O período que antecede a doença, chamado de pródromo, vem associado à compulsão por produtos açucarados que são fonte de energia para o cérebro, mas não têm estimulante suficiente para cronificar o cérebro excitado durante uma crise;
  10. Mito: cortar alimentos estimulantes é a única coisa a ser feita. Faz parte do processo de um plano de tratamento identificar na dieta do paciente a ingestão desses alimentos estimulantes e retirá-los, mas não adianta fazer isso sozinho porque a enxaqueca não é uma doença de causa alimentar, os gatilhos alimentares não são os únicos. A Nutrição está dentro de um contexto de tratamento.
Dra Thaís Villa - neurologista especialista em enxaqueca

Dra Thaís Villa – neurologista especialista em enxaqueca


“O problema não está no prato, porque as pessoas que não têm enxaqueca toleram muito melhor os alimentos estimulantes. Importante ressaltar: a enxaqueca não é doença de causa alimentar! A alimentação pode ser um gatilho ou ‘piorador’ das crises, porém, a enxaqueca não é só crise de dor de cabeça. É uma doença neurológica com dezenas de sintomas e a crise é o ápice dessa doença em que o paciente apresenta não somente a dor de cabeça severa, como também náuseas, vômitos, tonturas, auras visuais, zumbidos, pode ter também muito desânimo, alteração de humor ou mesmo alterações no funcionamento do intestino, entre outros sintomas”, explica Thaís Villa.


Tratamento

A neurologista orienta: “toda pessoa com enxaqueca deve procurar um neurologista, de preferência especialista em enxaqueca para o diagnóstico correto, e iniciar o tratamento da doença, que é complexa e tem muitas repercussões na vida do paciente. Inclusive complicações vasculares (como risco aumentado para AVC e infarto), além de perdas na qualidade de vida, como alterações do sono e de humor, tendência à ansiedade, a problemas cognitivos e outros. O tratamento integrado visa o controle dos sintomas e da doença”.

De acordo com a médica, o tratamento deve ser realizado de forma integrada e multidisciplinar, com foco no paciente como um todo. O tratamento individualizado deve combinar terapias com medicamentos de ponta e ajustes no estilo de vida, com o objetivo de proporcionar bem-estar ao paciente por meio do controle da dor.

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“Eu fui demitido por conta da minha doença rara” relata paciente com Doença de Pompe

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Vinicius ainda enfrentou desafios em seguir o tratamento após perder o emprego

Vinicius, 47 anos, vive em São Caetano do Sul com sua esposa e o filho. Assim como muitos brasileiros, viveu uma realidade difícil em meados de 2023: foi demitido de seu trabalho. Porém, diferente do cenário mais comum que levam a desligamentos, ele acredita que sua condição de saúde, a Doença de Pompe, diagnosticada em julho de 2019, foi o principal motivo para a dispensa. A demissão teve um impacto significativo, especialmente porque durante o período de desemprego, ele encontrou dificuldades para manter o tratamento adequado, o que resultou em uma piora na fraqueza muscular, uma das sequelas de sua doença rara.

Mesmo diante dessa adversidade, Vinicius não se deixou abater. Com dificuldade para se reinserir no mercado de trabalho, ele decidiu abrir seu próprio negócio, determinado a buscar sucesso nessa nova empreitada. Hoje, ele realiza acompanhamento médico semestral e exames periódicos para monitorar o pulmão, já que a Doença de Pompe pode afetar os músculos respiratórios de forma progressiva. Ele também faz sessões semanais de fonoaudiologia e fisioterapia para manter sua qualidade de vida. Vinicius teve sua jornada com a Doença de Pompe retratada na segunda temporada da série “Viver é Raro”, e afirma: “Eu vou buscando o meu limite”. A série já está disponível no Globoplay, inclusive para não assinantes, e compartilha em sete episódios a história e a jornada de pessoas que foram diagnosticadas com condições raras.

História e diagnóstico

Nascido e criado em São Paulo, Vinicius teve uma infância ativa, sempre envolvido em esportes, jogando futebol com amigos nas ruas do bairro. No entanto, desde pequeno, seu pai notava uma leve dificuldade em correr, mas isso nunca foi investigado profundamente. Aos 32 anos, durante uma partida de futebol, ele percebeu que suas pernas não tinham a mesma agilidade de antes. Inicialmente, ele acreditava que isso era apenas uma consequência do envelhecimento. Decidido a manter-se ativo, ele migrou para o tênis, mas logo começou a notar outros sintomas incomuns, como a queda de sua pálpebra, conhecida como ptose.

Preocupado, Vinicius procurou a orientação de uma colega oftalmologista, que recomendou uma investigação mais profunda. A partir daí, ele iniciou uma longa jornada de consultas com neurologistas e diversos exames, mas sem um diagnóstico claro. Havia suspeitas de uma doença neuromuscular, mas a condição específica ainda precisava ser identificada. Após meses de incertezas, ele foi encaminhado ao Dr. André Macedo, Coordenador Neuromuscular da Academia Brasileira de Neurologia. Durante a consulta, Dr. André notou que a língua de Vinicius também estava comprometida, um sinal distintivo da Doença de Pompe. Embora a biópsia muscular fosse necessária para a confirmação, o médico já tinha fortes suspeitas sobre o diagnóstico.

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A biópsia confirmou a suspeita, e um teste genético reforçou o diagnóstico: ele tinha a Doença de Pompe, uma condição causada pela deficiência da enzima alfa-glicosidase ácida, que leva ao acúmulo de glicogênio nos músculos, provocando fraqueza muscular progressiva e comprometimento respiratório. O diagnóstico trouxe um misto de alívio e preocupação para Vinícius e sua família. Embora soubesse que a doença tinha tratamento, o custo elevado da terapia enzimática substitutiva apresentava um novo desafio.

Tratamento e Desafios Adicionais

Após obter acesso ao medicamento, ele começou a realizar infusões intravenosas regulares em um centro de tratamento especializado. Ele logo sentiu uma melhora na força muscular, embora soubesse que o que já havia sido perdido não poderia ser recuperado. O tratamento ajudou a estabilizar sua condição, e até recuperou parte de sua fala e da deglutição. No entanto, a chegada da pandemia de Covid-19 trouxe novos obstáculos quando ele contraiu o vírus e precisou ser internado por 32 dias na UTI, a maior parte do tempo entubado devido ao comprometimento dos pulmões.

Surpreendendo a todos, Vinicius superou a Covid-19 e iniciou um longo processo de reabilitação, que durou quase um ano, no qual ele teve que reaprender a respirar e a falar. Esse período foi extremamente desafiador, mas ele se mostrou resiliente e determinado a seguir em frente.

Sobre a Doença de Pompe

A Doença de Pompe, também conhecida como glicogenose tipo II, é uma doença hereditária rara que pode se manifestar em qualquer fase da vida. É um transtorno neurovascular causado por um defeito na enzima alfa-glicosidase ácida, que provoca o acúmulo de glicogênio nos músculos. Esse acúmulo leva a fraqueza muscular progressiva, comprometimento respiratório, dores de cabeça e outros sintomas debilitantes. A doença afeta um indivíduo a cada 50 mil nascidos, e no Brasil, estima-se que existam cerca de 2,5 mil pessoas nessa condição. O diagnóstico precoce é fundamental para o tratamento eficaz, que pode retardar a progressão da doença e melhorar a qualidade de vida do paciente.

Sobre a série “Viver é Raro”

“Viver é Raro” é uma série documental que estreou sua segunda temporada no Globoplay. Produzida pela Casa Hunter, em parceria com a Cinegroup e Vbrand, a série traz histórias inspiradoras de pessoas com doenças raras. Cada episódio destaca a luta e a coragem dessas pessoas e suas famílias, mostrando que, apesar dos desafios, elas continuam a sonhar e a perseguir seus objetivos. A série tem como missão desmistificar a jornada das doenças raras, gerar conscientização sobre a causa e contribuir para a construção de políticas públicas mais inclusivas e efetivas.

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Comportamento

O Brasil enfrenta uma epidemia de ‘burnout’?

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A jornada de trabalho que chegava a durar 16 horas por dia, o excesso de responsabilidades e o sentimento de viver em função do emprego foram cruciais para que Juliana Ramos de Castro, de 41 anos, desenvolvesse uma síndrome de burnout.

Os primeiros sinais apareceram, em 2020, quando a nutricionista trabalhava como autônoma.

“Na época, acreditava que o que estava sentido era crise de ansiedade e fui levando o consultório até conseguir um trabalho em uma empresa em meados de 2022”, conta Juliana.

Quando assumiu um cargo de gerente, com uma jornada de trabalho extenuante, os sintomas, que até então oscilavam, tornaram-se frequentes.

“Comecei a sentir um cansaço fora do normal, onde mesmo descansando o fim de semana todo, não me recuperava”, diz ela.

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“Ao mesmo tempo, eram constantes as dores no peito, tontura, crises de choro, confusão mental e isolamento social. Não havia um gatilho para acontecer, simplesmente vinha, em qualquer lugar e momento.”

Ao procurar ajuda médica, Juliana descobriu que o que acreditava ser ansiedade era, na verdade, burnout.

Essa síndrome ocupacional é causada por um estresse crônico na vida profissional e se caracteriza também, além da exaustão, por um sentimento de negatividade em relação ao trabalho e uma piora do desempenho.

“Fiquei surpresa, fui afastada pelo médico psiquiatra do trabalho por 60 dias. E quando voltei, resolvi pedir demissão e mudar de área”, conta Juliana, que hoje trabalha como analista de um escritório de advocacia, um ambiente de trabalho que ela considera “mais saudável”.

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Em 2023, 421 pessoas foram afastadas do trabalho por burnout — é o maior número dos últimos dez anos no Brasil, segundo dados do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), do Ministério da Previdência Social.

O aumento ocorreu, principalmente, durante a pandemia do coronavírus. De 178 afastamentos por burnout, em 2019, o Brasil passou para 421, em 2023, um aumento de 136%.

Em uma década, o número de afastamentos por este motivo cresceu quase 1.000%, como mostra o gráfico abaixo.

Para especialistas ouvidos pela BBC News Brasil, três fatores ajudam a explicar este crescimento de diagnósticos de burnout no país:

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  • Maior conhecimento da população sobre transtornos e síndromes relacionados ao trabalho, principalmente, a partir do reconhecimento da Organização Mundial da Saúde (OMS) do burnout como uma síndrome ocupacional;
  • Maior nível de cobrança sobre trabalhadores no ambiente organizacional, o que culmina em pressão e estresse, desencadeadores de transtornos e síndromes;
  • E confusão de especialistas na hora de identificar se o paciente tem burnout ou outros transtornos mentais relacionados ao trabalho.

Hoje, estima-se que 40% das pessoas economicamente ativas sofram de burnout, aponta Alexandrina Meleiro, médica psiquiatra e porta-voz da Associação Nacional de Medicina do Trabalho (ANAMT).

“Mas nem todos os casos são identificados”, diz a especialista.

No Brasil, as únicas estatísticas oficiais disponíveis em relação à síndrome de burnout são contabilizadas pelo Ministério da Previdência Social, que apenas afere os afastamentos do trabalho por mais de 15 dias.

Os afastamentos por burnout por menos tempo não são contabilizados nas estatísticas oficiais.

Além disso, segundo Antônio Geraldo da Silva, presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP), atualmente, uma resolução do Conselho Federal de Medicina (CFM) estabelece que o médico é obrigado a provar que há uma relação entre o trabalho e o esgotamento profissional.

“Assim, pelo CFM, o médico psiquiatra somente pode afirmar que o paciente tem burnout se visitar pessoalmente o local de serviço e fizer nexo causal”, diz Silva.

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“Atendimentos apenas em consultórios não podem fazer tal diagnóstico.”

Juliana Ramos de Castro

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL – Legenda da foto,Trabalhando 16 horas por dia, a nutricionista Juliana Castro teve ‘burnout’

O que explica o aumento de diagnósticos?

Bruno Chapadeiro Ribeiro, pesquisador do Laboratório de Pesquisa em Psicologia, Organizações, Saúde, Trabalho e Educação (Laposte) da Universidade Federal Fluminense (UFF), diz que o Brasil enfrenta atualmente uma epidemia não apenas de burnout, mas também de transtornos mentais relacionados ao trabalho — o INSS contabiliza casos de burnout e de transtornos mentais e comportamentais separadamente.

“Nota-se essa maior incidência não só clinicamente, mas também nas pesquisas científicas que fazemos e nas perícias trabalhistas”, afirma Ribeiro.

“A judicialização sobre a questão, por exemplo, aumentou 72% na pandemia.”

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Dados do Ministério da Previdência Social apontam que, no ano passado, 27 trabalhadores foram afastados por dia devido a transtornos mentais e comportamentais relacionados ao trabalho.

Um total de 10.028 auxílios doenças foram concedidos por este motivo.

Para Ribeiro, o aumento de diagnósticos de burnout e de transtornos mentais relacionados ao trabalho ajuda a explicar um segundo fenômeno que ocorre no Brasil: o do crescimento de pedidos de demissão.

“Temos atravessado um momento histórico em que mais uma vez as relações e formas de trabalho têm sido questionadas, principalmente, por uma juventude de classe média insatisfeita com as formas com que o trabalho se organiza”, afirma Ribeiro.

“Nesse sentido, assistimos a fenômenos tais com o quiet quitting ou great resignation — termo utilizado para descrever a onda de demissões voluntárias do pós-pandemia — em que jovens altamente escolarizados pedem demissão de seus trabalhos por não verem mais sentido do trabalho e estarem à beira de um colapso por exaustão.”

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Meleiro avalia que isso ocorre devido a uma maior demanda por performance sobre os trabalhadores, em um curto espaço de tempo.

“A política econômica globalizada reduz custos com enxugamento de profissionais na empresa, assim, quem fica acaba trabalhando mais”, explica Meleiro.

“Além disso, com a expansão da informatização, sem o funcionário ter tempo de se atualizar, um duplo estresse emocional e físico é gerado no trabalhador. Isso acaba por gerar um aumento de diagnósticos de transtornos mentais relacionados ao trabalho.”

Descrito pela primeira vez em 1974, pelo médico psicanalista alemão-americano Herbert Freudenberger, o termo burnout é oriundo de “burn out”, que, em inglês, significa “queimar por completo” ou “esgotamento”.

Ficou mais conhecido entre os trabalhadores a partir de 2022, quando a síndrome foi incorporada à lista de classificação internacional de doenças da Organização Mundial da Saúde (OMS).

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Entrou na lista como um dos fatores que influenciam o estado de saúde de uma pessoa ou a leva a buscar os serviços de saúde — mas que não são classificados como doenças ou condições de saúde.

Agora, quem é diagnosticado com burnout tem as mesmas garantias trabalhistas e previdenciárias previstas para doenças do trabalho, como lesão por esforço repetitivo (LER) e transtornos de ansiedade.

“Assim, o que anteriormente era entendido com um quadro de ansiedade aguda ou crônica relacionado ao trabalho, hoje, muitas vezes com o reconhecimento oficial da OMS, médicos diagnosticam como burnout”, ressalta Meleiro.

“Isso faz com que tenhamos essa impressão de mais casos.”

Segundo Ana Maria Rossi, presidente da International Stress Management Association no Brasil (Isma-BR), organização dedicada à pesquisa, prevenção e tratamento do estresse, há um segundo fator: os diagnósticos equivocados de burnout.

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“É muito comum vermos situações em que o burnout é confundido com a depressão no trabalho. Isso faz com que esse aumento de burnout também seja reflexo desse número de diagnósticos equivocados”, afirma Rossi.

Homem com a cabeça baixa diante de notebook

CRÉDITO,GETTY IMAGES – Legenda da foto,O ‘burnout’ foi descrito pela primeira vez em 1974 pelo médico psicanalista Herbert Freudenberger

Sintomas e tratamento do ‘burnout’

Rossi explica que, para ser burnout, primeiro, os sintomas precisam estar relacionados ao trabalho.

“Dessa forma, um estudante ou gestante que não esteja no mercado de trabalho, por mais que estejam exaustos ou com sintomas similares aos da síndrome, não podem ter burnout, mas, sim, outros transtornos mentais, como a depressão.”

A especialista explica que, para o burnout ser diagnosticado, o paciente precisa ter ao menos uma das três dimensões que caracterizam a síndrome:

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  • Exaustão emocional: um cansaço profissional excessivo. Ocorre quando a pessoa percebe não tem mais a energia que seu trabalho requer.
  • Despersonalização: uma perda de sentimentos em relação a outras pessoas no trabalho, equipe ou clientes. É uma dimensão típica do burnout que o diferencia do estresse.
  • Reduzida realização profissional: sensação de insatisfação que a pessoa passa a ter com ela própria e com a execução de seu trabalho, gerando sentimentos de incompetência e baixa autoestima.

Elton Kanomata, médico psiquiatra do Hospital Israelita Albert Einstein, destaca que essas dimensões podem ser identificadas pelo próprio paciente a partir de sintomas físicos, cognitivos e emocionais.

“Dentre os sintomas físicos, é comum os pacientes com burnout terem fadiga persistente, insônia, tensão e dores musculares, cefaleia, sintomas gastrointestinais e aumento ou perda de apetite”, explica Kanomata.

Com relação aos problemas cognitivos, o psiquiatra ressalta a dificuldade de concentração e raciocínio, sensação de estafa mental e lapsos de memória.

“Já na esfera emocional, é comum o paciente ter esgotamento emocional, baixa autoestima com relação às competências e capacidades, sentimento de fracasso, desânimo, desmotivação, impaciência, irritabilidade, diminuição ou perda de interesses antes prazerosas, sintomas ansiosos e fóbicos em relação ao ambiente de trabalho ou a pessoas e elementos que remetam ao trabalho”, diz Kanomata.

O tratamento da síndrome de burnout é feito com o apoio de profissionais por meio de psicoterapia e medicamentos (antidepressivos e/ou ansiolíticos).

Segundo especialistas, os primeiros efeitos são sentidos pelo paciente, entre um e três meses após o início do tratamento.

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“Por isso, o tratamento deve ser individualizado e estruturado após uma avaliação detalhada da saúde física e mental de um profissional da saúde”, diz Elton Kanomata, do Albert Einstein.

Antônio Geraldo da Silva, da ABP, também ressalta quem tão importante quanto a terapia e o uso de medicamentos, é a mudança no estilo de vida do paciente.

“Praticar esportes, desenvolver estratégias para gerenciar o estresse, ter uma boa qualidade de sono, realizar atividades de lazer e ter tempo de qualidade com familiares e amigos é muito importante neste processo”, pontua Silva.

O especialista ressalta que, quando não tratado, o burnout pode levar ao desencadeamento de outros transtornos mentais.

‘Muitos achavam que era frescura’

Além dos sintomas físicos, cognitivos e emocionais, é comum que pessoas com burnout enfrentem durante o tratamento o preconceito contra síndromes e transtornos mentais — a chamada psicofobia.

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A pedagoga Kátia Aparecida Mantovani Corrêa, de 45 anos, diz que, quando sentiu os primeiros sintomas de burnout, foi comum enfrentar comentários de pessoas ao seu redor dizendo que ela queria chamar atenção.

“Era difícil para muita gente entender que a Kátia proativa, polivalente sempre pronta e disposta para agir em qualquer situação, de repente deu pane. Muitos achavam que era frescura e que eu queria chamar a atenção”, diz a pedagoga.

O diagnóstico veio em 2023. Acostumada a trabalhar sem parar, no início, ela achou que os sintomas que sentia há cerca de um ano eram devido ao cansaço e estresse diário. Mas, nas férias, percebeu que aquilo não era normal.

“Lembro que não conseguia desligar meus pensamentos, mesmo de férias. Minha cabeça estava a milhão. Foi quando resolvi procurar ajuda”, conta Kátia.

Trabalhando desde os 12 anos de idade, ela diz que, em um primeiro momento, não admitiu ter burnout.

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“Levei quase um ano para esse processo de autoconhecimento, aceitação e renovação. Hoje, levo a vida mais tranquila e mais concentrada. Digo que aprendi a importância de dizermos não.”

Outro problema comum são empresas que lidam negativamente com um diagnóstico de burnout, pontuam especialistas.

Isso faz com que muitos trabalhadores procurem ajuda especializada tardiamente, quando os sintomas estão mais graves ou desencadeando outros transtornos mentais, como a depressão.

O gerente de projetos Lucca Zanini, de 26 anos, diz que, quando foi afastado do trabalho pela primeira vez por não estar bem mentalmente, sua preocupação só aumentou.

“Sabia que a empresa não veria isso com bons olhos e meu maior medo era de ser demitido assim que eu voltasse”, diz Lucca.

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Temor que se confirmou. Ao voltar ao trabalho, ele conta que os colegas passaram a tratá-lo de forma diferente. “Não demorou para eu ser desligado.”

A demissão fez Lucca procurar ajuda especializada. Hoje, em um novo emprego, ele diz que a vida é outra.

Atualmente, além dos medicamentos e atividades físicas semanais, Lucca diz que separa um tempo somente para família e outro para o trabalho.

“Aprendi a falar não. Não aceito mais atividades que excedam minha capacidade de trabalho. Foco em minhas responsabilidades pessoais e dou a devida importância ao que vale a pena.”

Lucca Zanini com a esposa

CRÉDITO,ARQUIVO PESSOAL – Legenda da foto,Lucca Zanini, de 26 anos, se amparou na família após ser demitido do trabalho depois de ser diagnosticado com transtornos mentais e comportamentais

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Alexandrina Meleiro, da ANAMT, ressalta que, se for comprovado que a empresa ajudou a desencadear o burnout, pode ser responsabilizada judicialmente.

“O grande desafio é comprovar isso. Algumas empresas já são penalizadas por causarem burnout no funcionário, principalmente na Europa, mas ainda é muito difícil estabelecer o nexo causal”, ressalta Meleiro.

No Brasil, em 2022, uma operadora de turismo foi condenada pela Justiça do trabalho a pagar indenização de R$ 20 mil por danos morais a uma profissional que teve burnout.

De acordo com os autos, a profissional afirmou que se sentia sobrecarregada com o volume excessivo de atividades e pelas cobranças insistentes por parte dos chefes a qualquer momento, o que foi comprovado por meio de mensagens.

Para Bruno Ribeiro, da UFF, é necessário um maior engajamento das empresas brasileiras para prevenir o burnout.

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“A prevenção envolve mudanças na cultura da organização do trabalho, estabelecimento de restrições à exploração do desempenho individual, diminuição da intensidade de trabalho, diminuição da competitividade e busca de metas coletivas que incluam o bem-estar de cada um.”


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