Durante mesa na Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), realizada no Galpão Elza Soares, em São Paulo, o sociólogo Ricardo Antunes, referência na Sociologia do Trabalho no Brasil, afirmou que o país está “entrando no horror absoluto em relação ao trabalho”. Para ele, a expansão da indústria de plataformas e e-commerce tem intensificado uma forma de “escravidão moderna e digital”.
No entanto, Antunes destacou que, apesar do discurso de esgotamento da luta de classes, há resistência ativa: “Para quem pensa que a luta de classes acabou, vá ver o que os entregadores estão fazendo.”
O debate, que abordou as formas contemporâneas de exploração e resistência no mundo do trabalho, contou também com a participação da historiadora e rapper Preta Rara e do entregador e ativista JR Freitas, membro da Aliança Nacional dos Entregadores de Aplicativos (Anea).
Mobilizações dos entregadores contra a precarização
JR Freitas relatou as principais ações coletivas da categoria, como o Breque Nacional dos Apps, em 31 de março e 1º de abril de 2025, com paralisações em ao menos 70 cidades brasileiras. Na véspera do Dia da Mentira, milhares de motoboys se concentraram em frente à sede do iFood, em Osasco (SP), em ato simbólico contra as condições de trabalho.
Outro protesto ocorreu em 5 de agosto, quando entregadores realizaram uma motociata com churrasco na entrada do iFood Move, evento voltado a empresas e restaurantes com ingressos a R$ 1 mil. Nas faixas, exigiam uma taxa mínima de R$ 10 por corrida e denunciavam a “escravidão moderna” nas plataformas.
“Organizamos tudo sem amparo sindical, apenas por grupos de WhatsApp. Captamos o sentimento dos trabalhadores. Esse é o caminho: escutar”, afirmou JR Freitas, ressaltando que a mobilização nasceu de uma revolta coletiva contra a exploração.
Desafios políticos e sociais da categoria
Apesar da força das mobilizações, Freitas reconheceu que a maioria dos entregadores tem posições alinhadas à direita política, o que dificulta a construção de uma agenda de classe. “A narrativa da extrema direita é mais fácil e atraente do que dizer que é preciso derrubar a estrutura capitalista”, avaliou.
No entanto, defendeu que a esquerda precisa se conectar com quem está na base da pirâmide: “O motoboy, a empregada doméstica — sem essas pessoas, não vai dar para conquistar nada.” Para ele, o caminho é “organizar a raiva do nosso povo”.
Freitas também destacou o alto risco da profissão: com base em dados da Associação Brasileira de Medicina de Tráfego (Abramet), apontou que sete motociclistas morrem por dia no Brasil. “Por que ninguém fala? Porque é vida descartável. Porque não é filho de advogado, nem de dono de multinacional. É filho de trabalhadora doméstica”, afirmou.
Preta Rara: “a senzala moderna é o quartinho da empregada”
A rapper e historiadora Preta Rara, autora do livro Eu, empregada doméstica, compartilhou sua trajetória de sete anos trabalhando como doméstica em Santos (SP). “Minha mãe criou pessoas brancas que depois vieram querer me chamar de irmã”, relatou, denunciando a hipocrisia de patrões que se dizem progressistas.
Segundo o IBGE, das 6 milhões de pessoas que exercem trabalho doméstico no Brasil, 78,8% são negras. Preta Rara destacou que foi preciso uma lei para garantir que o cômodo onde a doméstica vive tivesse janela — daí o subtítulo de seu livro: a senzala moderna é o quartinho da empregada.
Em 2016, seus relatos no Facebook com a hashtag #EuEmpregadaDoméstica viralizaram, revelando abusos, como os cometidos por uma patroa professora universitária de esquerda. “A mídia só começou a falar quando viu que existem trabalhadoras que não têm férias, que não podem usar o banheiro”, criticou.
Para Preta Rara, a cobertura midiática se dividiu entre o discurso da meritocracia (“como ela saiu da precariedade”) e o apagamento coletivo (“como se eu fosse a primeira a denunciar”). Ela ressaltou o papel histórico de Benedita da Silva, que escreveu o prefácio de seu livro e foi uma das articuladoras da PEC das Domésticas.
Flipei: espaço de resistência e cultura popular
A Flipei foi transferida para o Galpão Elza Soares, do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), após a prefeitura de São Paulo vetar o uso da Praça das Artes. A mudança reforçou o caráter popular e de luta do evento, que segue até 10 de agosto com programação voltada à literatura independente, justiça social e direitos trabalhistas.
Com informações: Brasil de Fato