Desde os anos 1960, cerca de uma década depois da criação do PFOA, documentos da própria DuPont diziam que ela não deveria ser despejada na água, e apontavam relação entre o contato com o composto e o desenvolvimento de doenças como câncer de testículo, pâncreas e fígado, além do aumento da chance de problemas congênitos. Ainda assim, a empresa chegou a despejar mais de 7 mil toneladas de dejetos em tanques abertos, com contato direto com o solo.
Após quase dois anos de disputa, a multinacional americana chegou a um acordo com o fazendeiro no ano 2000. Mas Bilott não ficou satisfeito. Além de elaborar uma ação pública que resultou em uma multa de US$ 16,5 milhões à DuPont – o equivalente a 1,65% do lucro anual da empresa com a produção de PFOA, estimado em US$ 1 bilhão –, o advogado representou uma ação conjunta que motivou uma das maiores pesquisas epidemiológicas da história dos EUA. Cerca de 70 mil pessoas tiveram o sangue analisado para a presença de PFOA e os riscos associados à substância. Em 2012, o estudo determinou que havia um vínculo provável entre o contato com PFOA e o desenvolvimento de câncer de testículo e rim, doença da tireoide, colite ulcerativa, colesterol alto e pré-eclâmpsia (hipertensão arterial na gravidez).
Em 2017, a DuPont fez um acordo coletivo de US$ 671 milhões para encerrar os cerca de 3.500 processos individuais movidos por pessoas afetadas pela PFOA. Em abril de 2024, a história – que virou o filme O Preço da Verdade, de 2019, recém-incluído no catálogo brasileiro da Netflix – ganhou um novo capítulo. A agência ambiental americana determinou que os PFAS devem ser removidos da água nos Estados Unidos. Estima-se que indústrias dos EUA que se destacaram pela produção de PFAS, como DuPont, 3M e Chemours (uma subsidiária da DuPont), podem pagar até US$ 15 bilhões para ajudar a financiar melhorias em sistemas municipais para limpeza da água no país.
“É praticamente um consenso global que essas são ameaças para a saúde e o meio ambiente. E a rota mais direta para essas substâncias entrarem em nossos corpos é pela água”, afirma Bilott. “Mas demorou quase 25 anos para começarmos a regular substâncias como PFOA, e há pouco estamos falando sobre as outras. A batalha definitivamente não acabou.”
Se há sintomas, pode ser tarde demais
Uma vez que são difíceis de quebrar e estão em produtos que usamos todos os dias, é natural que tais moléculas deixem marcas em nossos corpos: em 2007, um estudo publicado na revista Environmental Health Perspectives analisou amostras da população americana com mais de 12 anos e identificou a presença dessas substâncias em mais de 98% delas.
“Acho que nunca vimos uma ameaça ambiental com a abrangência e escala como a que estamos lidando com PFAS. Esses compostos nunca estiveram no planeta e, agora, por causa do ser humano, contaminam, potencialmente, todos os setores”, diz Bilott.
Em um estudo feito em 2020, cientistas do Environmental Working Group estimaram a presença de PFAS na água de mais de 200 milhões de americanos. E, em 2024, pesquisadores da Universidade de Birmingham, na Inglaterra, revelaram que os compostos fluorados podem ser absorvidos pela pele. Eles usaram tecidos humanos artificiais para analisar o comportamento de 17 tipos de PFAS. 11 deles penetraram a pele em até 36 horas.
A lista de problemas para a saúde humana é longa. Começa com a batizada “gripe do Teflon”: nos anos 1950, trabalhadores das fábricas da DuPont que inalavam gases provenientes do aquecimento do PFTE (politetrafluoretileno, comercialmente conhecido como Teflon) eram acometidos por sintomas semelhantes ao de uma gripe: febre, dor de cabeça, calafrios, tosse seca, aperto no peito e, ocasionalmente, lesões pulmonares severas. Em 2016, um estudo da Agência Internacional de Pesquisa em Câncer (IARC) associou o PFOA como um possível cancerígeno, com base em evidências de câncer de testículo e rins. E, a cada ano, o corpo de pesquisas sobre os efeitos da exposição a PFAS aumenta.
Em 2018, pesquisadores da Universidade Harvard e da Universidade do Sul da Dinamarca examinaram o sangue de mulheres americanas e identificaram a relação entre a concentração de PFAS no sangue e o surgimento de diabetes tipo 2. Em 2020, uma pesquisa do Instituto Nacional do Câncer, nos EUA, concluiu que há uma correlação entre a exposição ao PFOA e o risco de tumores em células renais. No mesmo ano, a Universidade de Indiana, nos EUA, encontrou evidências de que múltiplos compostos PFAS podem induzir estresse oxidativo (bagunçando a atuação dos sistemas de defesa antioxidante), são imunossupressores (“barram” a ação do sistema imune), podem induzir alterações epigenéticas (mudanças em vida no DNA) e influenciar a proliferação de células. Todas essas características aparecem em substâncias carcinogênicas.
Uma análise de 2022 que considerou estudos com roedores e pesquisas epidemiológicas da população dos EUA apontou evidências da relação entre PFAS e doenças no fígado. Outra pesquisa, publicada em 2023, associou a exposição a PFAS ao aumento de risco de câncer de tireoide. Em setembro do mesmo ano, um estudo feito com meninas de Ohio e da Califórnia mostrou que PFAS podem afetar hormônios reprodutivos e retardar o início da puberdade. Outro estudo com adolescentes, de março deste ano, identificou que a exposição a PFOS pode gerar problemas ósseos, como a osteoporose. E as vias pelas quais esses químicos chegam ao corpo humano vão além da água que bebemos. Também em 2024, uma pesquisa da Escola de Medicina de Dartmouth, nos EUA, identificou a presença de PFAS no plasma e no leite materno de mulheres grávidas do estado de New Hampshire que incluíram frutos do mar, ovos, café e arroz na dieta.
A grande quantidade de evidências científicas sobre PFAS reunidas nos EUA motivou uma abordagem mais restritiva no país. O estado de Minnesota, onde a gigante química 3M tem sua sede, passou a proibir o uso em embalagens de comida – algo que a Dinamarca faz desde 2019 –, e vai banir o uso de PFAS em 11 produtos, incluindo panelas, tapetes, fio dental, cosméticos e roupas de cama, já a partir do ano que vem. A ideia é vetar compostos do tipo por completo no estado até 2032. Em Massachusetts e Connecticut, o banimento total virá antes, em 2027 e 2028, respectivamente.
O movimento anti-PFAS nos EUA vem na esteira da “Lei Amara”, batizada em referência a Amara Strande. A jovem de 20 anos vivia no subúrbio de Oakdale, em Minnesota, e morreu em 2023 após 5 anos lutando contra um câncer raro no fígado. Ela defendia que a causa para sua doença tinha sido a exposição a PFAS.
Esses compostos nunca estiveram no planeta e, agora, por causa do ser humano, contaminaram potencialmente todos os setores — Robert Bilott, advogado americano especialista em causas ambientais
Brasil ainda engatinha
Em contraste com os EUA, o cenário no Brasil é marcado pela falta de informação. Embora seja signatário da Convenção de Estocolmo – tratado que busca regular os chamados Poluentes Orgânicos Persistentes (POPs), assinado por 186 países e em vigor desde 2004 –, o país enfrenta desafios no monitoramento e controle de químicos nocivos.
Um deles envolve o uso da sulfluramida. Desde 1993, o Brasil usa o agrotóxico como formicida. A degradação desse composto, no entanto, gera PFOS (ácido perfluorooctanoico sulfônico), que também está no guarda-chuva das PFAS. Entre 2004 e 2013, a média anual de produção de sulfluramida foi algo em torno de 30 toneladas – de 2003 a 2008, chegamos a ser um dos cinco maiores produtores de compostos precursores de PFOS e o terceiro em uso, atrás apenas da China e Bulgária.
Além da sulfluramida, outra fonte de PFAS no Brasil são misturas que contêm surfactantes, como o PFOA, usadas para extinguir incêndios que envolvem líquidos altamente inflamáveis – comuns em aeroportos, refinarias e portos. Publicada em 2022, uma análise detectou a presença de PFOA em sete das oito marcas de espuma extintora utilizadas para combater um incêndio no Porto de Santos. Apesar de a PFOA aparecer como um dos 30 POPs a serem banidos, informações sobre o uso no Brasil são praticamente inexistentes.
Durante os estudos para atualizar o Plano Nacional de Implementação da Convenção de Estocolmo (NIP, na sigla em inglês), publicado em 2023, o Ministério do Meio Ambiente (MMA) enviou ofícios a 1.368 empresas e associações questionando o uso da substância, mas não obteve resposta de nenhuma delas. Na base de dados do Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços (MDIC), não há informações sobre importação ou exportação.
“Falta uma regulação no Brasil para a gestão de substâncias químicas. A gente não consegue ter a noção exata do que está sendo importado, exportado e muito menos produzido”, explica a coordenadora da atualização do NIP brasileiro, Thaianne Resende Henriques Fábio. Ela espera que parte dessa dificuldade seja resolvida com o Projeto de Lei 6.120/2019, aprovado no último dia 11 de setembro na Comissão de Meio Ambiente (CMA) do Senado. O texto cria o Inventário Nacional de Substâncias Químicas, para padronizar a nomenclatura dos mais de 16 mil compostos nas diversas bases de dados do país. “O [fato de o] Brasil ainda não ter uma regulação fere muito o setor frente aos outros países”, completa.
Mais grave ainda é a falta de estudos sobre o tema. “O Brasil está bem atrasado nos dados, e o motivo é financeiro. Temos poucos pontos de monitoramento e não temos programas nacionais [para pesquisa sobre PFAS]”, destaca a oceanóloga Juliana Leonel, professora da UFSC que assina um estudo de 2023 sobre a ameaça de compostos perfluorados ao oceano.
A ausência de informações sobre a ocorrência de PFAS em produtos no Brasil é notável — Trecho da conclusão de estudo publicado em 2022 por pesquisadores da UFRJ
Do pouco que se sabe, destaca-se o monitoramento do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente feito entre 2017 e 2018 na América Latina e no Caribe para determinar a eficácia da Convenção de Estocolmo na proteção da saúde humana e do meio ambiente. Publicado em 2021, o relatório identificou níveis altos de PFOS e PFOA em amostras coletadas no canal de São Vicente, no litoral paulista (a segunda maior concentração das substâncias dentre os 6 pontos analisados no continente), e em quantidades menores no Rio Amazonas.
Em 2022, uma revisão de 6 mil estudos globais feita por cientistas da UFRJ encontrou apenas dez pesquisas que investigaram a ocorrência de PFAS no Brasil. Destas, sete identificaram a substância em amostras biológicas (humanos, animais marinhos e eucaliptos) e três em amostras de água (em torneiras do Rio de Janeiro e Porto Alegre e na água superficial da Baía de Todos os Santos, na Bahia). Em 2023, cientistas da Unicamp identificaram, pela primeira vez, a presença de sete tipos de PFAS também nas bacias dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí, que se estende por 76 municípios e atende mais de 5,8 milhões de pessoas no estado de São Paulo.
Presentes em panelas antia- derentes e embalagens de papel para fast food, itens de higiene como fio dental, roupas impermeáveis, tintas, cosméticos diver- sos, ceras, revestimentos e até mesmo espumas para combate a incêndios, as PFAS se tornaram onipresentes — Foto: Davi Augusto
Presentes em panelas antia- derentes e embalagens de papel para fast food, itens de higiene como fio dental, roupas impermeáveis, tintas, cosméticos diver- sos, ceras, revestimentos e até mesmo espumas para combate a incêndios, as PFAS se tornaram onipresentes — Foto: Davi Augusto
“A ausência de informações sobre a ocorrência de PFAS em produtos no Brasil é notável. Além da falta de engajamento do setor industrial em fornecer informações sobre os usos listados de PFAS além da sulfluramida para a produção de formicidas, essa lacuna de informações é crítica para a conformidade nacional com a Convenção de Estocolmo”, escreveram os pesquisadores da UFRJ.
Se não sabemos ao certo onde os perfluorados estão, fica difícil tentar retirá-los da natureza. Leonel, da UFSC, explica que até existem técnicas para remover PFAS da água, mas somente em modo experimental. Além disso, custam caro: a estimativa da agência ambiental americana é que será necessário cerca de US$1,5 bilhão ao ano para as empresas de saneamento cumprirem a norma que obriga retirar PFAS da água. A soma ganha proporções ainda maiores em um país onde quase metade da população não tem acesso a saneamento básico. “Nossos tratamentos de água já não degradam compostos menos fortes. Não vão degradar os PFAs”, opina Montagner, da Unicamp.
Na visão da gerente da Divisão de Acordos Multilaterais da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb), Lady Virginia Traldi Meneses, a questão não é apenas o monitoramento ambiental, mas a prevenção. “Temos que encontrar alternativas tecnológicas e de produtos, e promover o consumo sustentável”, diz a gerente, que também coordena o Centro Regional da Convenção de Estocolmo para Assistência Técnica e Transferência de Tecnologia para a Região da América Latina e Caribe. O centro funciona dentro da Cetesb, uma das principais referências do Brasil em pesquisas sobre POPs. Em 2021, a instituição iniciou um estudo de coleta, análise, metodologia e monitoramento de PFAS em amostras de solo e água em 10 pontos do Estado, com previsão de publicação em 2025. O objetivo é obter um diagnóstico para embasar ações no estado de São Paulo.
Desafio global
O número de substâncias no grupo das PFAS é grande: são mais de 10 mil compostos, dos quais mil são efetivamente usados em larga escala e 300 em maiores quantidades, segundo estima Leonel. Em 2021, uma pesquisa analisou 4.730 PFAS listados em um relatório de 2018, feito pela OCDE e o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma). A conclusão foi que, do total, somente 256 (menos de 6%) têm relevância comercial a nível mundial. Cabe ressaltar, no entanto, que os pesquisadores que assinam o levantamento eram empregados de companhias que manufaturam compostos perfluorados.
“Quando finalmente chegamos ao ponto de regular algumas das substâncias, as empresas começaram a criar químicos parecidos, que continuam parte da família de PFAS. E, agora que a gente sabe que existem compostos com seis, quatro ou mesmo dez carbonos, os produtores dos compostos dizem ‘toda as pesquisas focam em cadeias de oito carbonos’”, explica o advogado Bilott. “Então, parte do que estamos vendo é uma briga em torno da definição de quais químicos devem ser incluídos nessa família, que deve ser regulada.”
O advogado destaca que a população precisa ser informada sobre o que esses químicos são, como reduzir a exposição e como identificar as possíveis fontes de PFAS no meio ambiente. Isso passa, primeiro, por uma comunicação mais clara, que informe sobre a presença das substâncias e ajude a orientar a escolha de quem usa.
Na visão de especialistas, muitos dos riscos ainda são desconhecidos. “Os efeitos afetam gerações. Pequenas concentrações dessas substâncias permanecem no nosso corpo por longos períodos”, explica Montagner, da Unicamp. “Começar a perceber os problemas que os PFAs trazem para a saúde é só a ponta do iceberg. Se já está afetando a saúde humana, também está afetando muitos outros organismos que nem sabemos ainda.”
Apesar dos desafios — tanto no controle quanto na eliminação de PFAS —, um vislumbre de otimismo vem de quem luta contra as substâncias há quase três décadas. Para Robert Bilott, é possível imaginar um mundo sem PFAS. “Vale lembrar que esses químicos não existiam antes de 1940. O mundo e a sociedade moderna, sim. E em lugares que estão exigindo que essas substâncias sejam eliminadas, as empresas estão encontrando alternativas”, destaca.
“Nossos tratamentos de água já não degradam compostos [químicos] menos fortes. Não vão degradar os PFAS” — Cassiana Carolina Montagner , professora de Química da Unicamp
A coordenadora do NIP brasileiro compartilha do otimismo, ao menos em relação aos POPs. Ela cita avanços no cenário brasileiro desde a assinatura da Convenção de Estocolmo: a eliminação do uso de DDT (um inseticida de baixo custo) e outros agrotóxicos; a campanha de destinação de agrotóxicos obsoletos; o Projeto PCB Responsável, que busca eliminar o bifenilpolicloradol (usado como isolante em transformadores de energia); e a refundação da Comissão Nacional de Segurança Química, extinta durante o governo Bolsonaro.
Embora reconheça que pensar sobre a abrangência e a escala disso tudo possa ser devastador, o advogado considera que sua própria batalha — que começou com a ação do fazendeiro da Virgínia Ocidental e resultou em uma norma de uma agência federal dos EUA — demonstra o impacto da pressão popular. “Nós podemos consertar isso, e estamos vendo mudanças incríveis. Então, é também uma história de muita esperança de que as coisas podem mudar”, conclui Bilott.
Fonte: Revista Galileu