Entrevista
Como proteger os territórios do neoextrativismo, do “capitalismo parlamentar” e do “Estado de intimidação”?
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7 meses agoon
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Fato novo
Coletivo elenca políticas que agravaram destruição socioambiental no Brasil entre 2019 e 2022 e evidenciam importância dos “lançadores de alerta” e das Ciências Sociais para evitar tragédias
São muitos os números, relatos e análises que evidenciam as ações políticas executadas no Executivo e no Legislativo que permitiram às gigantes da indústria minerária intensificarem a destruição socioambiental, característica do setor, durante o último governo federal. E uma reunião robusta desses dados é encontrada em duas publicações lançadas pelo Coletivo de Pesquisa Desigualdade Ambiental, Economia e Política, formado por professores, pesquisadores e estudantes das universidades federais do Rio de Janeiro, Fluminense, Rural do Rio de Janeiro, do Recôncavo da Bahia e de Alagoas (UFRJ, UFF, UFRRJ, UFRB e UFAL).
Em “Capitalismo extrativista e Estado de intimidação – Brasil, 2019-2022” e “A contribuição das Ciências Sociais à prevenção de desastres ambientais”, o Coletivo traz um compilado de informações disponíveis em artigos científicos, relatórios de entidades não governamentais e reportagens investigativas, pontuando projetos de lei, decretos, resoluções e outros atos normativos, no Palácio do Planalto e do Congresso, que esvaziaram profundamente a participação social e a capacidade e efetividade do próprio Estado em aplicar as ferramentas de controle ambiental que regulam as atividades de mineração no país.
As publicações são resultado de pesquisas realizadas no âmbito do Projeto “O papel das Universidades e dos movimentos sociais na prevenção de desastres com barragens e no respeito aos direitos humanos em áreas atingidas por grandes projetos de mineração no Brasil”, que teve apoio de recursos da Fundação Ford.
Ao longo de dezenas de páginas, os autores elencam, com muitas tabelas descritivas e gráficos, os atos das diversas instâncias do governo federal, durante a gestão de Jair Bolsonaro (PL), que vulnerabilizaram ainda mais os grupos populacionais que historicamente são mais invisibilizados, criminalizados e violentados, por ocuparem territórios visados pelo neoextrativismo, e que, ao mesmo tempo, favoreceram o crescimento dos lucros já bilionários das gigantes do setor. Os pesquisadores evidenciam que esse contexto constitui “a vigência do que se tem chamado de ‘capitalismo parlamentar’, sistema em que grandes corporações empresariais se fazem representar de forma quase imediata no âmbito do Legislativo”.
As publicações apontam também como os danos sociais e ambientais dessa dinâmica predatória são mascarados para a sociedade por meio de investimentos maciços em publicidade na mídia hegemônica, prática que é facilitada pelo próprio fato de que, entre os maiores beneficiários da desregulamentação do sistema de normatização, licenciamento e fiscalização dessas atividades econômicas, estão empresas que lideram o mercado da tecnologia da informação e da comunicação, como Google e Microsoft.
Corpos sob ataque
Entre os inúmeros dados explicitados nas publicações, estão, por exemplo, o fato de que o Brasil é “o país mais letal para os defensores da terra e do meio ambiente, com o maior número documentado de assassinatos” desde 2012 e que, durante a gestão de Bolsonaro, “a Política de Proteção [a Defensores e Defensoras de Direitos Humanos] foi desestruturada, sofrendo cortes orçamentários, restrição na participação social e na transparência e redução da equipe e infraestrutura”. O principal alvo dessa violência em busca do controle dos territórios, sublinham, ainda é o corpo humano, principalmente de pessoas indígenas e negras (um terço das vítimas) moradoras da Amazônia (85% das mortes).
Considerando os episódios de violência no campo em todos os biomas, o caderno Conflitos no Campo, publicada pela Comissão Pastoral da Terra (CPT) de 2022 “mostra um crescimento de cerca de 54% dos conflitos após o golpe de 2016”, 97% deles promovida pelo capital, devido à redução no número de ocupações feitas por movimentos sociais no período. “Como principais agentes [da violência no campo], aparecem os empresários e fazendeiros; na sequência, grileiros, madeireiros e garimpeiros”.
Escazú
As publicações mostram também que, atualmente o país é “um dos que mais violam o direito à liberdade de expressão no mundo”, com uma média de 11 episódios por semana durante o ano de 2022 e com o maior patamar de ataques a esses profissionais desde a década de 1990.
Em meio a esse acirramento do que já era acima da média, o Congresso Federal ainda se esquivou de ratificar o “Acordo de Escazú”, relativo ao “Acesso à Informação, Participação Pública e Acesso à Justiça em Assuntos Ambientais na América Latina e no Caribe”, considerado “o primeiro tratado regional de direitos humanos e ambientais na América Latina e no Caribe e o primeiro instrumento juridicamente vinculante do mundo a incluir disposições sobre defensores do meio ambiente, direito de acesso à informação ambiental e de participação na tomada de decisões ambientais”.
Cortes, “boiada” e “revogaço”
Nas páginas dos relatórios do Coletivo, estão diversas tabelas elencando centenas de medidas tomadas pelo governo federal e o Congresso – parlamentares integrantes das Frentes Parlamentares da Agropecuária (FPA) e da Mineração (FPM), especialmente – que visam facilitar a usurpação dos territórios de interesse pela indústria minerária neoextrativista e sua impunidade diante dos crimes socioambientais cometidos.
Entre elas, a “extinção de mais de 700 Conselhos (“Revogaço”); dizimação de “´programas finalísticos de reforma agrária”, com redução de 99% das verbas; corte de mais de 90% também nas “ações de reconhecimento e indenização de territórios quilombolas, concessão de crédito às famílias assentadas”; e de mais de 80% nos “programas de monitoramento de conflitos agrários e de pacificação no campo”.
STF
Por outro lado, as publicações mostram o contraponto protagonizado pelo Supremo Tribunal Federal (STF), que exerceu “um papel importante no refreamento de algumas das medidas abusivas”, chegando a “instaurar a chamada ‘Pauta verde’ para apreciação e julgamento de um conjunto de processos ajuizados por partidos políticos que questionavam o esvaziamento das políticas ambientais”. E que, com a chegada do novo governo federal, boa parte dessas ações inconstitucionais, agrupadas na chamada Pauta Verde, teve pedido, junto ao STF, de perda total ou parcial, por parte da Advocacia Geral da União (AGU) e Ministério do Meio Ambiente, visto que não interessavam mais à nova presidência da República.
“Lançadores de alerta”
A importância das pesquisas feitas pelas Ciências Sociais para evitar tragédias evidencia a atuação permanente de personagens chamados, pela Sociologia Pragmática do risco, de “lançadores de alerta” – pessoas que denunciam os perigos e violações sofridas pelas comunidades de territórios visados pelo neoextrativismo e exigem as tomadas de providências necessárias por parte do poder público e da justiça.
“Diferentemente da figura do delator, o lançador de alerta não se posiciona numa lógica de acusação, mas pretende divulgar um estado de fato, uma ameaça danosa para o que se estima ser o bem comum, o interesse público ou geral. Eles podem despertar consciências a respeito de irregularidades em curso, bem como se antecipar ao advento de um fato indesejável, orientando sua mensagem para o futuro. As vítimas presumidas dos riscos são frequentemente coletivas, reais ou potenciais. A emissão de um alerta é, por sua vez, um processo tortuoso, situado entre dois limites: o do pedido de socorro e o da previsão de um mal, podendo tanto ser levado a sério, como ser rejeitado, denunciado, ser posto em banho-maria ou suscitar uma controvérsia entre peritos”, explicam os autores.
Dez casos emblemáticos
O maior crime socioambiental da mineração mundial, eclodido em novembro de 2015 em Mariana/MG, com o rompimento da barragem de Fundão, da Samarco/Vale-BHP, é uma das dez tragédias estudadas pelos pesquisadores, que inclui ainda os seguintes casos: Mineração Paragominas em Jambuaçu; TKCSA; Serra do Gandarela; Estrada de Ferro Carajás; Projeto S11D; Onça Puma; Salobo; Sossego; e Brumadinho.
Da análise, foram identificadas 15 categorias de danos presentes nos dez casos: Poluição atmosférica; Poluição de recurso hídrico; Poluição do solo; Poluição sonora; Alteração do regime tradicional de uso e ocupação do território; Ausência ou irregularidade na autorização ou no licenciamento ambiental; Assoreamento de recurso hídrico; Erosão do solo; Desmatamento e/ou queimada; Contaminação ou intoxicação por substâncias nocivas; Alteração do ciclo reprodutivo da fauna; Invasão e danos causados em área protegida ou unidade de conservação; Implicações raciais nos impactos; Ausência de Consulta Prévia, Livre e Informada (Convenção nº 169 OIT); e Alagamento/Inundação.
Ao longo da publicação, os pesquisadores organizam uma série de dados que mostram o aspecto inquestionável de “tragédia anunciada” presente em cada um dos casos analisados. Sobre a Samarco, por exemplo, informações públicas já davam conta de que “entre 2011 e 2014, uma elevação em 260% do número de acidentes de trabalhos, indicando uma tendência de deterioração ampliada das condições de trabalho”.
Racismo ambiental
Há ainda os dados de racismo ambiental, como o fato de que, “entre 2013 e 2014, a Samarco aumentou em 50% seu consumo de água” e de que “no mesmo período, o município de Mariana viveu uma situação crítica de escassez hídrica, que culminou no estabelecimento e intensificação de uma política de rodízio de abastecimento, o que demonstra um privilégio ao uso industrial em detrimento do consumo humano”.
Ou a percepção de que a população negra foi a mais afetada pelo desastrem como ilustram artigos referenciados na publicação, informando percentuais acima de 60% de população negra em algumas das comunidades mais próximas da barragem rompida e, consequentemente, mais imediata e drasticamente atingidas pela lama, como Bento Rodrigues (população 85% negra, a 6km da barragem); Paracatu de Baixo (80% e 40 km); Gesteira (70,4% e 62 km); e Barra Longa (60,3% e 76 km).
A reportagem de ((o))eco conversou com o coordenador geral do projeto, Henri Acselrad, professor colaborador do Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano e Regional da UFRJ (IPPUR/UFRJ), e com Juliana Neves Barros, professora do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias da UFRB, sobre os caminhos que as publicações apontam para qualificar a luta para tornar a mineração uma atividade econômica menos predatória, a partir da aplicação efetiva da legislação e das políticas públicas. Confira trechos das entrevistas a seguir:
((o))eco: O caso Samarco mostra que antes de Bolsonaro já havia desleixo do governo federal com fiscalização de barragens. O que mudou e o que permanece, a partir de 2023, com a terceira gestão de Lula?
Henri Acselrad: O modelo de desenvolvimento que se estabeleceu no Brasil desde o início dos anos 2000 reflete uma articulação entre processos de reprimarização e de financeirização da economia. Costumamos chamar de neoextratista ao modo de inserção internacional subordinado de economias da periferia do capitalismo global caracterizado pela especialização exportadora em bens intensivos e recursos naturais e a apropriação de rendas extraordinárias por grandes corporações extrativas e financeiras. Este modelo se constitui no contexto de relações internacionais que reservam aos países da periferia do capitalismo global – como o Brasil – o papel de utilizar seu território para produzir bens exportáveis que contribuem para degradar seus recursos em água, fertilidade do solo e biodiversidade. No entanto, ao mesmo tempo, pretende-se que estes países criem áreas protegidas que possam compensar as emissões de gases-estufa dos países mais industrializados.
Ora, sabemos que o governo brasileiro do período 2019-2022 se esmerou em estimular a função exportadora e degradante, ao mesmo tempo em que desmontou as agências de proteção ao meio ambiente, paralisando também os projetos de reconhecimento e demarcação de terras indígenas, quilombolas e de criação de unidades de conservação. O governo eleito em 2022 tem buscado reconstituir o sistema institucional de proteção ambiental e melhorar suas performances em termos de imagem internacional. Tem investido em ações de contenção do desmatamento na Amazônia, embora não tenha conseguido limitar o avanço das atividades degradantes no Cerrado. Ele age, por certo, no sentido de melhorar a imagem ambiental do país, mas não parece abrir mão do apoio à ocupação do território por monoculturas de exportação e à expansão da fronteira da grande mineração. O modo de inserção do Brasil na economia internacional em nada mudou, consagrando uma divisão internacional desigual das atividades poluidoras que se apoia numa distribuição mais que proporcional de riscos – como o de barragens, contaminação de rios, grilagem de terras públicas e invasão de terras indígenas – sobre os grupos sociais de baixa renda, em particular populações não brancas de países do Sul global como o Brasil. A resistência a este modelo passa por proteger as terras e territórios de pequenos produtores agroecológicos, povos indígenas e tradicionais, de modo a que possamos aprender com eles meios de substituir o modelo agroquímico monocultural e abandonar as dinâmicas extrativas que reproduzem velhas relações coloniais.
O governo eleito (…) tem investido em ações de contenção do desmatamento na Amazônia, embora não tenha conseguido limitar o avanço das atividades degradantes no Cerrado. Ele age, por certo, no sentido de melhorar a imagem ambiental do país, mas não parece abrir mão do apoio à ocupação do território por monoculturas de exportação e à expansão da fronteira da grande mineração
Henri Acselrad
Entre esses mestres populares com que a ciência, juristas, legisladores e gestores públicos precisam aprender formas mais inteligentes e sustentáveis de viver em sociedade, estão os “lançadores de alerta”, figuras que, historicamente, sempre cumpriram seu papel de de denúncia e anúncio, dentro de um contexto ideal de respeito ao princípio da prevenção e precaução, mas que, afora as pesquisas e publicações das ciências sociais e do jornalismo independente, são sistematicamente silenciados pelo capital. Como é possível fazer com seus alertas serem considerados nas tomadas de decisões e definições de políticas públicas?
Henri Acselrad: Sim, as práticas portadoras de risco, que ameaçam a estabilidade ecológica das atividades de terceiros, podem e devem ser alteradas em função da denúncia dos danos que elas geram quando estes danos são percebidos e denunciados pelos grupos que são por elas atingidos. Mesmo antes de qualquer estudo técnico sobre riscos e danos das práticas de transformação do meio ambiente em grande escala – como monoculturas, grandes projetos industriais, barragens, oleodutos, minas, polos eólicos etc. – o princípio de precaução indica que se ouça as populações potencialmente atingidas. Se isto tivesse sido feito, não teria havido o desastre da Samarco no Rio Doce. Se se tivesse apreendido com este desastre, teriam sido ouvidos os alertas que apontavam o risco de rompimento da barragem I do Córrego do Feijão, no município de Brumadinho, que ocorreu quatro anos depois do da Samarco. O saber ecológico espontâneo das populações que vivem e trabalham nos espaços afetados por estes projetos deve ser considerado e legitimado como indicador primeiro da possibilidade de ocorrência de danos e desastres. Toda a proteção da integridade de uma bacia como a do Rio Doce, por exemplo, depende de que se dê atenção à vigilância localizada dos moradores de Bento Rodrigues, que foram os primeiros a terem suas vidas viradas pelo avesso em razão do que certos autores chamam de “irresponsabilidade organizada” – própria ao modelo neoextratista.
Depois de um curto tempo com três grandes desastres de alcance mundial – Samarco/Vale no Rio Doce; Vale em Brumadinho; e Braskem em Maceió – há um terreno mais propício para que os alertas consigam “constranger” as empresas e os governos a mudarem de postura?
Henri Acselrad: Após quase uma década desde o desastre ocasionado pela Samarco, Vale e BHP na bacia do Rio Doce, persistem inúmeros problemas relacionados à segurança e fiscalização das atividades de mineração, assim como aos impactos contínuos nas comunidades atingidas. Do ponto de vista legislativo, diversas medidas foram propostas, a partir da mobilização popular, mas nem todas se materializaram. Destacam-se, no âmbito nacional, a aprovação da Política Nacional de Segurança de Barragens (Lei nº14.066/2023) e a Política Nacional de Direitos das Populações Atingidas por Barragens (Lei nº14.755/2023), além das legislações estaduais, em Minas Gerais, como a Lei Mar de Lama Nunca Mais (Lei nº. 23.291/2019) e a Política Estadual dos Atingidos por Barragens (Lei nº 23.795/2021), todas surgidas após o desastre em Brumadinho.
No entanto, o PL 2985/2019, que define normas gerais para o licenciamento ambiental de empreendimentos minerários, e que poderia garantir maior participação, controle social e segurança às atividades minerárias, ainda não foi votado. No que diz respeito à responsabilização e à reparação dos danos provocados por esses desastres, cabe assinalar que as estratégias empresariais foram variadas. No caso do desastre na bacia do Rio Doce, houve uma espécie de empresariamento da gestão da reparação a partir da criação e da atuação da Fundação Renova. Essa entidade, criada para executar os programas ao longo da bacia, não garantiu participação da população atingida, bem como atuou em diversos momentos prioritariamente de forma a reduzir os custos do processo de reparação para as empresas que causaram os danos, bem como buscou proteger essas empresas dos possíveis prejuízos à sua imagem, por meio de grandes investimentos em marketing e publicidade.
Em Brumadinho, ainda que a solução encontrada tenha sido distinta, o Acordo assinado pelas instituições de justiça e pelo governo do Estado não garantiu mecanismos concretos de participação popular, e, como denunciado por organizações e movimentos sociais, parece ter atendido a interesses eleitorais, mantendo diversas comunidades e territórios à margem do processo de reparação. Como dizem representantes dos atingidos, “é nos silêncios que as barragens rompem”. A “sirene social” – decorrente da percepção coletiva da sociedade – deve, portanto, tocar o alerta e fazer barulho suficiente para chamar governos e empresas à responsabilidade.
Há outros caminhos possíveis de compensação dos danos provocados e para evitar que novos avanços autoritários ocorram no país, ainda sob o jugo do capitalismo extratista?
Juliana Neves Barros: Primeiro, é preciso dizer que quando nos referimos, na pesquisa, à associação entre autoritarismo político e de mercado como uma dinâmica de poder própria do capitalismo extrativista, entendemos que essa dinâmica atravessa governos, conjunturas, ainda que com graus diferenciados de força. Basta nos lembrarmos aqui do que foi o processo de votação do Código Florestal em 2012, de flexibilização do licenciamento ambiental que já se observa há mais de uma década, do histórico de implantação autoritária de grandes empreendimentos sobre os territórios de populações locais, do enraizamento dos mecanismos de grilagem de terras, da ação de milícias e da impunidade da violência no campo que faz com que o Brasil ocupe o topo no ranking de assassinato de defensores de direitos humanos ligados à luta pela terra e à defesa do ambiente, conforme apresentado em vários relatórios anuais, mas cito aqui pesquisa publicada recentemente pela Global Witness com dados referentes à última década. Então, o que chamamos de capitalismo extrativista pressupõe uma lógica de reprodução e acumulação de capital baseada numa divisão de papéis dentro do sistema-mundo, organizada a partir da hierarquização racializada de corpos, territórios, ambientes humanos e não humanos, que passam a ter sua existência subordinada aos interesses daqueles colocados em posição superior; essa estrutura é um legado da condição colonial e pauta a relação entre países chamados centrais e periféricos, bem como se reproduz internamente na relação entre regiões, populações brancas e não-brancas, que mobilizam categorias de raça, etnia, gênero, origem, classe, para naturalizar desigualdades e opressões.
Isso é importante para assentar a complexidade e profundidade do desafio em termos de mudança, de alcance da justiça, mas não para afastar o poder de agência das pessoas, dos coletivos, das organizações e movimentos que almejam transformar esse estado de coisas. A ação política é capaz de mudar a direção e a força dos ventos e é interessante observar como cada vez mais essas vozes críticas percebem que é necessário a atuação e reflexão articulada contra um conjunto de opressões que se interligam; é preciso ser multidimensional no discurso e na prática, falar de degradação ambiental, racismo, heteropatriarcado, privilégio branco, pobreza, colonialismo, do modo que se co-constituem no capitalismo; ser interseccional nas lutas, como nos propõe Ângela Davis. Claro que há o outro lado: o crescimento da extrema direita no mundo, ancorada por forças ligadas ao liberalismo econômico, e essa ambiência de intimidação em relação àqueles que lutam por liberdades e justiça. Isso sinaliza senão o acirramento dos conflitos. No caso do Brasil, e que é o contexto de nosso relatório de pesquisa, tratamos de buscar as conexões entre um governo de inspiração autocrática, como foi o governo Bolsonaro, com um discurso escancaradamente antiambientalista, e que empreendeu um mandato destrutivo em termos de direitos e políticas públicas, com os interesses de um capital extrativo que quer mascarar suas práticas por meio da propaganda do desenvolvimento sustentável e do compromisso social. A eleição de Lula em 2022 retoma outros espaços de participação, debate, significa uma abertura maior do que chamamos esfera pública, mas a responsabilização dessas empresas guarda desafios grandes, tendo em vista a articulação e a sofisticação das estratégias que lançam mão para ocultar/negar os danos que produzem, que vão desde o lobby junto à opinião pública e veículos de mídia, aos 3 poderes, destacando-se o financiamento indireto de bancadas parlamentares como a ruralista, por exemplo, até à autorepresentação de seus interesses na ocupação da máquina estatal.
Onde você entende que residem as maiores dificuldades para a responsabilização efetiva das empresas em relação aos seus crimes?
Juliana Neves Barros: Acho que um dos principais aspectos a serem denunciados é a retórica da legalidade assumida pelas empresas, baseada em diversas práticas que visam a legalização do ilegal. A síntese dessas práticas encontra-se bem resumidas nas conclusões do relatório: “Ao lado de TACs [Termos de Ajustamento de Conduta], moratórias, compromissos internacionais em não obter produtos de áreas desmatadas, o levantamento de dados aponta a persistência renovada de mecanismos que buscam dar ares de legalidade a práticas criminosas, estimuladas pelas relações comerciais no mercado global de commodities, como a grilagem verde, amplamente utilizada na cadeia da soja, a lavagem de gado ou boi-pirata, presente na cadeia de fornecimento e exportação da carne, a atuação dos petroleiros piratas, que dificulta a identificação e responsabilização nas situações de vazamento e em diversos outros crimes ambientais praticados pela indústria petroleira, a lavagem de ouro no garimpo ilegal, que camufla a origem do produto a partir da invasão de terras indígenas e unidades de conservação, as práticas de arrendamentos em terras indígenas disfarçadas de cooperação agrícola”, a contratação terceirizada de milícias para atuarem no controle do território, entre outras práticas.
(…) um dos principais aspectos a serem denunciados é a retórica da legalidade assumida pelas empresas, baseada em diversas práticas que visam a legalização do ilegal
Juliana Neves Barros
Além disso, as corporações investem em estratégias variadas de ocultação dos passivos sociais e ambientais, que passam pelo controle sobre informações técnicas especializadas, pela disseminação da dúvida e desqualificação das denúncias com argumentos pseudocientíficos, além de impulsionarem a expulsão de comunidades e grupos a partir da manipulação do discurso da segurança e das condições ambientais inadequadas, como vem ocorrendo com as contaminações químicas em áreas pesqueiras e áreas contíguas às barragens de mineradoras. A fragilização das ações de controle e fiscalização corroborou também o quadro de normalização da impunidade corporativa”.
Constranger as empresas e governos é uma forma de mudar um pouco o estado das coisas?
Juliana Neves Barros: Mesmo com todas as denúncias já realizadas, o testemunho recente de tragédias como o que a Vale fez em Brumadinho e Mariana, a Braskem em Maceió, a indústria petroleira no litoral do Nordeste, o crime organizado do latifúndio no território Pataxó Hã-Hã-Hãe e em tantos outros territórios tradicionais, ainda se insiste em difundir o imaginário desses agentes como heróis nacionais, que sustentam nossa economia e não podem sofrer qualquer tipo de freio. Então, sem dúvida, voltando à sua pergunta, os caminhos possíveis passam por essa mudança na relação entre Estado e empresas violadoras, garantindo mais regulamentação, mais controle e fiscalização, mais seriedade e responsabilidade com os direitos da população ameaçada ou atingida. A segurança jurídica nos territórios também é uma frente importante, assim demarcação e homologação dos territórios indígenas, quilombolas, pesqueiros, das áreas de assentamento, é uma pauta prioritária para a proteção dos povos e da biodiversidade. Tudo isso é que vai contribuir tanto para uma perspectiva de prevenção, no sentido de evitar os tais danos, quanto de reparação, no caso daqueles já ocorridos. Mostrar que aqui, ao contrário do que propagaram os portugueses no início da colonização, não é terra nuliuus, ou seja, não é terra de ninguém para satisfazer a cobiça sem limites dos agentes econômicos.
Outro caminho é a mobilização política através de campanhas internacionais, como bem fazem os povos indígenas, capazes de constranger possíveis financiadores da cadeia global de destruição, como também o Estado brasileiro. Por fim, esse Estado só vai assumir uma face mais regulamentadora da ação das empresas na medida em que for constrangido a tanto pela atuação dos grupos sociais, pela mobilização e disputa que se faz nas mobilizações de rua, nas ações diretas, nos espaços institucionais de participação, na disputa da opinião pública, nas articulações nacionais e transnacionais das lutas. Surpreendeu-nos, cabe dizer, a capacidade de mobilização e produção de informação de coletivos, redes e organizações não-governamentais no Brasil durante o governo Bolsonaro, mesmo com toda a censura e fechamento da esfera pública que o período representou. Existe uma tradição de resistências no nosso país que a gente tem o dever de lembrar, reconhecer e acionar para imaginar e construir futuros.
De que forma a academia e a imprensa podem colaborar para construir um cenário para saudável e justo daqui para frente?
Juliana Neves Barros: A academia e a imprensa são espaços privilegiados de produção de informação e, ainda mais a imprensa, de circulação e formação de opinião pública. A produção científica na academia é pauta de disputas, claro: às empresas interessam interferir na produção das Universidades de modo a esvaziar críticas e contestações aos possíveis efeitos negativos de seus projetos. E tentam fazê-lo sobretudo através da pauta do financiamento privado de pesquisas. Mas há um outro lado, representativo de uma produção cientifica mais autônoma, que tem realizado estudos e pesquisas muito consistentes que nos alertam sobre os riscos de determinados empreendimentos e processos produtivos à saúde, ao ambiente, à qualidade de vida das populações. Esses pesquisadores infelizmente têm sofrido várias formas de constrangimento e assédio processual. Assim, do ponto de vista da academia, entendo que prezar pela autonomia da produção cientifica, pela liberdade de pesquisa, é um primeiro ponto, que passa inclusive pela garantia do financiamento público. A outra é a popularização do conhecimento cientifico, a circulação do que é produzido e numa linguagem mais acessível, despida dos jargões tecnicistas e empolados que tradicionalmente marcam o confinamento da linguagem acadêmica.
Já a imprensa, a grande imprensa, precisa estar mais comprometida com a qualidade da informação e o debate público de assuntos que tem camadas complexas de abordagem. Normalmente, os temas são simplificados ao extremo e enviesados em torno de polarizações que passam longe da realidade; há muito mascaramento. Basta ver como o agronegócio é blindado na grande mídia, como é abordado nas novelas, como nas situações de crimes ambientais a identificação/o nome das corporações sequer é mencionado, como ainda é forte a perspectiva de desqualificação e criminalização da ação dos movimentos sociais, como os fatos são comunicados numa avalanche de associações informacionais e emocionais que nos compele ao automatismo, à recepção irrefletida, à desafetação pelo que se passa, como as situações de violência e violações, quando retratadas, são tratadas como um evento excepcional… Penso que, sim, é preciso democratizar a mídia televisiva, quebrar monopólios, porque essa “desinformação” em massa não acontece à toa, está atrelada à concentração de poderes e articulação de interesses: o grupo que é proprietário da rede de TV também é proprietário de imensas extensões de terras e está ocupando cargos estratégicos na máquina pública; recebe recursos vultosos por publicidade de empresas cujas práticas jamais serão questionadas… Cabe ainda reconhecer o papel que a imprensa chamada de alternativa vem cumprindo, o jornalismo investigativo que muitos veículos vêm se propondo a fazer, cujos resultados são disponibilizados nas redes sociais; o alcance ainda infelizmente é pequeno se comparado à mídia televisiva, mas muita informação boa, consistente, fruto de reportagens investigativas muito corajosas, tem sido produzida. E vem contribuído para fazer avançar a crítica e democratizar o acesso à informação, dar mais visibilidade a perspectiva daqueles grupos recorrentemente silenciados nos espaços de poder. Cito o trabalho de sites como De Olho nos Ruralistas, Agencia Pública, O Eco, Observatório da Mineração, Repórter Brasil, entre tantos outros.
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Entrevista
“Precisamos assumir que o que está acontecendo no mundo é a misoginia e o ódio contra as mulheres”, afirma ministra Cida Gonçalves
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4 semanas agoon
16 de novembro de 2024By
Fato novo
Responsável pela pasta das Mulheres, ministra foi entrevistada nesta sexta-feira (15) no programa Giro Social. O G20 Social antecede a Cúpula dos Chefes de Estado do G20, no Rio de Janeiro, e prossegue até sábado (16)
A ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, enfatizou a importância das contribuições das mulheres no G20 Social e fez uma convocação: “precisamos assumir que o que está acontecendo no mundo é a misoginia e o ódio contra as mulheres”. De acordo com Cida, nas documentações construídas pelo Grupo de Trabalho Empoderamento de Mulheres, a questão da autonomia econômica foi tratada como uma das prioridades para que mulheres possam sair da situação de violência, ter autonomia, definir o que fazer e ter o direito de ir e vir.
As afirmações e posições foram destacadas pela ministra das Mulheres, nesta sexta-feira, 15 de novembro, em participação no programa Giro Social. Cida ressaltou ainda a importância das contribuições das mulheres no Women20 (W20) e no G20 Social. “Os países que compõem o G20 fizeram o debate e trabalharam a questão da misoginia como um processo muito forte em todos os países e que traz recortes de raça, de etnia, que cada país contém e o nosso contém todos”, acrescentou.
O objetivo do G20 Social, que ocorre no Rio de Janeiro e prossegue até sábado (16), é ampliar a participação de atores não-governamentais nas atividades e nos processos decisórios do G20, que durante a presidência brasileira tem por lema “Construindo um Mundo Justo e um Planeta Sustentável”.
EMPODERAMENTO DAS MULHERES — Precisamos primeiro assumir que o que está acontecendo no mundo é a misoginia e o ódio contra as mulheres. Eu acho que o documento do G20, de empoderamento das mulheres, traz isso com muita força. Os 19 países que compõem o G20, que fizeram o debate, trabalharam essa questão da misoginia como um processo muito forte em todos os países. E trazendo os recortes necessários de raça, de etnia, que cada país contém e o nosso contém todos eles.
MULHERES NEGRAS — As mulheres negras no Brasil são as que mais morrem. São 62% das mulheres que sofrem feminicídio são vítimas de violência. Então, você tem um recorte muito forte que faz parte do racismo que está colocado também no mundo.
AUTONOMIA ECONÔMICA DAS MULHERES — A autonomia econômica é um fator primordial e primeiro para a mulher poder sair da situação de violência, ter a sua autonomia, definir o que fazer, o direito de ir e vir. Isso é fundamental. E é por isso que, no documento do G20, nós tratamos a questão da autonomia econômica como uma das prioridades. E, tratando dentro da perspectiva de que ela tenha que ter o trabalho. Que o salário seja igual ao do homem, trabalho igual. Nós temos esse desafio ainda no mundo inteiro, mesmo na Alemanha, que também já tem a lei da igualdade salarial, nós ainda temos uma diferença que está colocada igual no Brasil. Então, isso é um problema do mundo. E tem também a questão de acreditar que as mulheres podem ser empreendedoras, que elas podem estar onde elas quiserem.
MULHERES NAS CIÊNCIAS EXATAS — Temos outro desafio, que é colocar as mulheres nos espaços principalmente de exatas, da ciência e tecnologia, da matemática, da física, da química, porque as mulheres ainda estão nos lugares da questão humana e isso tem sido o potencial para colocar elas com salários desiguais.
POLÍTICA NACIONAL DE CUIDADOS — O texto, o que foi aprovado, o projeto de lei que o governo mandou, que o presidente Lula encaminhou para a Câmara dos Deputados, na nossa avaliação é um grande avanço. Nós temos condições, a partir daí, de ter políticas públicas. E o texto também foi acrescido da questão do Pacto Federativo e isso avança para as responsabilidades dos municípios, dos estados, sobre a política de cuidados. Teve algumas coisas que foram tiradas, mas a essência principal do projeto se manteve. E para nós, governo, ele é fundamental, porque agora nós vamos trabalhar com o plano, porque ele determina que nós precisamos ter um Plano Nacional de Cuidados.
DIVISÃO DO CUIDADO — Quais são os serviços e o que é que nós estamos pensando para que, de fato, as mulheres tenham mais tempo e como é que nós podemos fazer a divisão do cuidado? Porque também é importante, e aí eu quero vincular com a questão da autonomia econômica, que as mulheres não conseguem ter ascensão ao mundo do trabalho e o trabalho que elas conseguem é o de menor salário, exatamente porque ela é responsável pelo cuidado da família.
FEMINICÍDIO ZERO — A mobilização do Feminicídio Zero, ela é uma proposta para que o governo faça a sua parte, os governos façam a sua parte, que é implementar políticas públicas. E, para isso, nós estamos fazendo as Casas da Mulher Brasileira, os centros de referência, a Patrulha Maria da Penha e nós estamos investindo em tornozeleira eletrônica. Então, nós estamos fazendo várias ações de políticas públicas, mas nós precisamos que a sociedade se envolva.
PAPEL DOS HOMENS — A grande questão do feminicídio, da mobilização, é que a gente precisa falar com todas as pessoas. E nós não podemos mais falar só com as mulheres, nós precisamos falar com os homens. E a decisão de ir para os estádios, de ir para outros caminhos, é exatamente para que nós possamos trazer os homens para o debate da violência contra as mulheres. É fazer com que eles também se posicionem, porque nem todos os homens no Brasil são agressores, nem todos eles são feminicidas. Então, quem não é agressor precisa estar com a gente, precisa ser o nosso interlocutor, dizer para o seu amigo: “Não dá, não faz, é crime”. Tem que denunciar.
LIGUE 180 — A Central 180 voltou a ser um canal de receber denúncias, mas também é importante a questão de que o 180 passa também a dar informação, não só a receber denúncia, mas prestar informação e orientação. Quem não sabe o que fazer em uma situação de violência, tem um vizinho, tem um amigo, não sabe o que fazer, liga no 180. As atendentes estão treinadas, estão preparadas para te orientar, para dizer quais os passos, em que artigo da lei se enquadra. O que pode, o que não pode, isso é super importante. E o 180 é um canal fundamental, porque ele é um telefone gratuito, em qualquer lugar do país, agora também a nível internacional, para atender as brasileiras. Portanto, nós podemos atender as mulheres brasileiras do mundo inteiro.
INTERCÂMBIO ENTRE PAÍSES — Cada país tem uma realidade, a gente termina trocando um pouco mais a perspectiva do que é específico para cada país e que une todos os países. Então, uma das questões que a gente tem colocado é a qualificação dos profissionais, dos servidores públicos, para fazer o atendimento, não só nos serviços especializados de cada país, porque no Brasil a gente tem a Lei Maria da Penha, que inclui vários serviços, mas você tem outros países que não têm, que você só tem o Ministério Público. Cada país termina se adequando, mas o importante é que todos os serviços e todas as pessoas estejam preparadas para atender as mulheres em situação de violência.
AVANÇOS NA LEGISLAÇÃO — É um desafio que está colocado para o mundo inteiro, nós temos muita dificuldade com relação à questão das legislações no Brasil e fora do Brasil. E, portanto, a nossa Lei Maria da Penha é uma lei muito importante, ela é a terceira melhor do mundo, então, ela está servindo de inspiração para o mundo. Em compensação, a Lei do México do Feminicídio é muito mais avançada que a nossa. Temos diversas trocas que vão sendo feitas, vão sendo aperfeiçoadas nos debates do G20. De fato, são as trocas que permitem a nós, por exemplo, estar assinando um acordo de cooperação com o México para a troca de experiência, na questão da política de cuidados, da autonomia econômica e do enfrentamento à violência.
MULHERES NA POLÍTICA — O Brasil no G20, além de não ser o primeiro, não é o segundo, é o penúltimo, porque a gente tem vários países que já têm paridade. O próprio México tem mais de 54%, elas já estão chegando em 60%, por exemplo, de senadoras e deputadas. Então, os países que já têm a lei de paridade estão avançando. Está faltando isso, essa é a grande questão, nós precisamos fazer um debate no Brasil. Nós temos a Lei de Cotas que coloca 30% de cota para as mulheres, tanto para serem candidatas nos partidos, quanto de financiamento. Nós só estamos vendo avançar quando é obrigatório a paridade, portanto, é eleger, garantir a eleição de mulheres, colocar as mulheres nos espaços de poder.
DIREITOS REPRODUTIVOS E SEXUAIS — O Grupo de Trabalho discutiu toda a questão da saúde integral das mulheres, porque na pauta dos direitos sexuais e reprodutivos, muitos países ainda têm restrições. Acho que é importante a gente dizer isso. Então, nós trabalhamos dentro da perspectiva do que eram os processos de consensos. O que foi consenso? A questão de você trabalhar a saúde integral da mulher, de uma forma que ela dê conta de todo o processo de planejamento familiar, de organização familiar, da saúde reprodutiva, de todos os processos e, principalmente, da questão da maternidade.
PEC EM TRAMITAÇÃO — No Brasil, nós temos um problema que é a questão da PEC que, na verdade, para nós, é um retrocesso. Nós temos há muitos anos, desde o Código Penal, a questão de três processos que garantem a mulher o direito ao aborto legal: no caso de violência sexual, no caso de risco de vida e no caso de anencefalia — que o STF decidiu agora. E nós sabemos que precisamos avançar muito mais na perspectiva do debate sobre essa garantia de direitos. Nós não queremos avançar para legalizar o aborto, nós não queremos fazer debate, nós queremos que o que está aí seja garantido, que a gente não perca nenhum direito.
ATENDIMENTO ÀS MULHERES — Tem a contracepção de emergência que vai evitar a gravidez, vai evitar doenças sexualmente transmissíveis e elas podem fazer o acompanhamento e tratamento psicológico para essa questão da violência. Quando nós falamos em atendimento às vítimas de violência sexual, nós estamos falando desse atendimento. Nós estamos falando do apoio. É um apoio imediato. Acolhimento que a mulher precisa, exatamente no momento que ela mais não tem o que fazer. Ela tem vergonha de dizer à família, ela tem vergonha de dizer para as amigas, ela se sente suja, ela se sente mal. É no serviço de saúde que ela vai ser acolhida, não é em outro lugar. E lá ela vai ter a garantia do anonimato e todos os procedimentos para que não dê prosseguimento a esse processo. Então, quando vamos falar que precisamos avançar e investir mais no atendimento às mulheres vítimas de violência sexual, nós estamos falando de todo um atendimento preventivo para que não chegue no aborto.
Fonte: Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República
Entrevista
Um Parque Nacional da Tijuca que poucos conhecem
Published
4 semanas agoon
14 de novembro de 2024By
Fato novo
Por oito anos, o fotógrafo de natureza Vitor Marigo se dedicou a fotografar lados pouco conhecidos do parque nacional mais visitado do país, resultado do trabalho pode ser conferido em novo livro
Inserido no coração da metrópole carioca, o Parque Nacional da Tijuca é reconhecido por ser o parque que recebe maior número de visitantes no país e lar de um dos maiores cartões-postais da cidade: o Corcovado e o Cristo Redentor. Ainda assim, conhecer apenas estes atrativos significa uma minúscula fração de tudo que a área protegida oferece. Em 2017, o fotógrafo de natureza Vitor Marigo embarcou na missão de apresentar o público – e os próprios cariocas – ao verdadeiro Parque Nacional da Tijuca. O resultado desse trabalho de oito anos é o seu recém-lançado livro de fotografias que carrega o nome do parque.
A viagem visual pelas 216 páginas do livro e suas 319 fotografias levam os leitores a conhecer os quatro setores que compõem o parque nacional e trazem registros que vão desde os pontos turísticos e diferentes perfis de visitantes que frequentam a área protegida, até trabalhos de pesquisa – com destaque para o Projeto Refauna, que se dedica a trazer de volta espécies extintas localmente no parque e que foi acompanhado de perto por Vitor desde o princípio.
O objetivo do fotógrafo com o livro é justamente “mostrar que o parque é de todos. E o propósito do meu trabalho sempre foi o de aproximar as pessoas da natureza”, conta Vitor Marigo em entrevista a ((o))eco.
Aos 40 anos, o fotógrafo de natureza, que já teve suas fotos publicadas em veículos como National Geographic Brasil, Lonely Planet, BBC e em ((o))eco, vê nascer seu primeiro livro autoral de fotografias, com textos em português e inglês. A obra é dedicada ao seu pai, o também fotógrafo de natureza Luiz Claudio Marigo, e ao amigo Peterson de Almeida, antigo funcionário do parque carioca e um dos responsáveis por apresentar Vitor aos lados menos conhecidos da Tijuca.
Com a permissão da unidade de conservação de frequentar a área fora dos horários de visitação, Vitor teve a oportunidade de conhecer um Parque Nacional da Tijuca que não se mostra a qualquer um e fotografar dos primeiros aos últimos raios de sol em algumas das paisagens mais icônicas do Rio de Janeiro. E até mesmo explorar o parque de noite e ver a sinfonia da floresta mudar com outros personagens da fauna notívaga.
O trabalho resultou no que Vitor Marigo classifica como “o maior acervo de fotos inéditas do Parque Nacional da Tijuca” e no livro, que já pode ser encomendado online.
O fotógrafo conversou com ((o))eco na semana anterior ao lançamento do livro, realizado no dia 9 no Parque Natural Municipal da Catacumba, no Rio de Janeiro, onde inaugurou ainda uma exposição com suas fotos.
Confira abaixo a entrevista de ((o))eco com Vitor Marigo:
((o))eco: O PNT é um parque que tem um destaque enorme, é o mais visitado do país. De onde surgiu a ideia de fazer um livro de fotografias e o que você acha que esse livro traz de diferente para retratar esse parque que já foi tantas vezes retratado?
Vitor Marigo: Uma coisa que meu pai [Luiz Claudio Marigo, fotógrafo de natureza] sempre me ensinou é que quando a gente vai fazer alguma coisa, ainda mais sendo fotógrafo documental, você tem que se dedicar com profundidade.
E esse projeto tem muito a ver com o Peterson de Almeida, antigo funcionário do Parque Nacional da Tijuca [atual gestor do Parque Nacional Grande Sertão Veredas] e meu amigo. Inclusive eu dedico o livro a ele e ao meu pai. Porque o Peterson foi a primeira pessoa que eu falei da ideia do livro e ele apoiou muito. E foi através do meu contato com ele que descobri que eu, que achava que conhecia o Parque Nacional da Tijuca, na verdade só conhecia o parque de forma superficial.
Porque você achar que conhece o Parque Nacional da Tijuca porque você já foi no Corcovado, Paineiras, Parque Lage e Pico da Tijuca, é a mesma coisa que você dizer que conhece o Rio porque foi em Copacabana. E isso me deu vontade de ir mais a fundo e conhecer tudo que era possível no parque, cada ruína, cada trilha.
O livro é organizado por capítulos e setores de visitação. O primeiro capítulo “Floresta na Cidade” são fotos da floresta vista de fora, mostrando onde ela está e como ela se mistura com a cidade do Rio de Janeiro. Depois os outros capítulos são por setor, com os pontos visitáveis de cada um deles. São mais de 60 pontos documentados no livro, está bem completo. Acho que até para quem trabalha lá, o livro pode revelar coisas que ninguém conhece, porque eu fiquei oito anos investido em visitar todos os lugares possíveis, em todas as condições possíveis, já que eu tinha permissão do parque para visitar em horários alternativos. Eu espero que o livro revele um parque incrível que as pessoas não conhecem e não sabem que existe.
Outra motivação para fazer esse projeto é que o Parque Nacional da Tijuca é o lugar onde eu moro. É muito mais fácil eu fazer o livro sobre o lugar que eu moro do que sobre os Lençóis Maranhenses, por exemplo. Ser na minha cidade permitiu com que eu me dedicasse com muito mais profundidade a esse projeto. Sem falar que são imagens famosas de uma cidade famosa, é o parque mais visitado do país, então isso facilita inclusive conseguir patrocínio. Então quando eu comecei a juntar as peças, fez todo o sentido.
E o que você descobriu durante essa imersão de oito anos no parque?
Uma coisa que me fascinou conforme eu fui explorando mais o Parque Nacional da Tijuca é que ele é um parque extremamente singular. O Parque Nacional da Tijuca viveu todos os ciclos econômicos do país, o desmatamento para abrir as fazendas de café, viu a chegada da corte portuguesa indo frequentar a floresta… Tudo isso trouxe pro Parque Nacional da Tijuca um aspecto cultural e histórico que é muito difícil de encontrar em outros parques. Esse parque fala de natureza, mas também fala da história do país e da cidade do Rio de Janeiro. Você consegue ver as ruínas, fontes, captações de água… tudo isso dá um aspecto histórico único para o parque. É isso, você consegue contar muito da história do país e do Rio através do parque. Não é só natureza, bicho e paisagem, é Dom Pedro, é Barão de Escragnolle, Castro Maya, Burle Marx… Isso traz muita coisa interessante.
Houve algum ponto de toda essa história que chamou sua atenção?
Acho especialmente interessante as ruínas do Mocke [foto na capa da reportagem], que era um holandês, Alexander Van Mocke, que teve a maior fazenda de café, chegou a ter mais de cem mil pés de café e 16 edificações. Então quando você visita as ruínas, você vê todas essas edificações, tem uma jabuticabeira que revela o que devia ser um antigo pomar. E pelas pinturas antigas você tem uma dimensão da devastação, na época que aquilo era tudo café, e você via tudo da fazenda até a pedra da Gávea, era tudo pé de café. A fazenda fica ali na Serra da Carioca, na direção da Vista Chinesa. E se você seguir na trilha você passa por várias captações de água.
Você comentou que é o maior acervo de fotos inéditas do Parque Nacional da Tijuca. Que fotos são essas?
Inédita por duas razões. Tem lugares que nunca tinham sido fotografados profissionalmente e outros por questões de luz, porque eu tive permissão do parque para fotografar fora dos horários de visitação, então consegui fazer fotos de nasceres e pores do sol, de noite. Nunca ninguém tinha fotografado alguém deitado numa rede na garganta da Pedra da Gávea ou as vias de escalada da face sul do Corcovado, aquela virada para Lagoa Rodrigo de Freitas, que é a única big wall [longas rotas de escalada que levam mais de um dia de ascensão] na cidade. E aí os escaladores dormem naquela barraca que fica suspensa na parede e eu fiz umas fotos lindas do pessoal. Foram quatro inspeções até eu conseguir me familiarizar com a parede para estar seguro e confortável para fazer as fotos na quinta ida. E eu fazia o rapel da base [técnica de descida na corda] e depois tinha que subir, normalmente me içando, o que os escaladores chamam de “jumarear”.
Imagino que sejam talvez as fotos favoritas…
Sim, na verdade eu tenho duas fotos favoritas. Uma foi a que mais deu trabalho, que foi essa da escalada na face sul do Corcovado. Foi muito trabalhoso, não era só eu e os dois escaladores, junto comigo tinham mais três pessoas ajudando. Isso deu muito trabalho. E foram cinco missões até conseguir as fotos, sendo a última com pernoite. Eu comecei de tarde para fazer fotos diurnas e do pôr do sol, e no dia seguinte do nascer, e entrou uma nuvem que não estava na previsão, mas até isso deu certo porque rendeu fotos incríveis da gente escalando no meio da nuvem. Eu fiquei muito feliz com o resultado e feliz de executar bem as fotos.
E a outra, ironicamente, é a que menos deu trabalho, que foi a foto do raio caindo no Cristo Redentor. Não é uma foto fácil, mas como fotógrafo de natureza, estou acostumado a ir para o mato, passar perrengue, pegar carrapato. E essa foto eu fiz botando a câmera no tripé na varanda do meu apartamento. Eu vi que estava tendo tempestade de raios, botei a câmera fazendo fotos sequenciais, vi o enquadramento, as configurações adequadas e deixei ela lá uma hora e meia tirando fotos e fui beber um vinho [risos], no conforto da minha casa. E quando eu fui ver depois tinha conseguido duas fotos de raio, as duas estão ótimas, uma delas está no livro e a outra está na exposição. Fiquei super feliz. Então essas são as duas favoritas: uma que foi extremamente trabalhosa e a outra que não deu praticamente nenhum trabalho.
Conta um pouco mais desses bastidores do livro.
Uma das coisas mais interessantes para mim nesse processo foi estar no parque fora dos horários de visitação. Fazer trilhas de noite, ver como a fauna se transforma, como parece que tem outro “turno” de bichos. É muito legal ver essa transformação do dia para noite e como a noite tem seus próprios personagens.
Além disso, durante a pandemia de Covid, o parque fechou para visitação, mas como eu tinha a autorização de trabalho, eu pude continuar frequentando, de forma bem segura, sem contato com outras pessoas. E para ser sincero, estar no parque me salvou durante a pandemia, foi minha válvula de escape. E como estava tudo parado, as viagens e outros trabalhos, eu pude me dedicar 100% a este projeto durante esse período.
Tem também uma história engraçada de bastidor, que envolve o Peterson. Porque eu e ele somos muito viciados em café e nos orgulhamos de tomar café em tudo que é canto. E um dia eu subi uma árvore com ele, para fotografar ele instalando uma armadilha fotográfica no dossel para tentar registrar os bugios do Projeto Refauna. E nós tomamos um café lá no alto da árvore, no meio do dossel da floresta [risos].
Inclusive, é legal destacar que o livro nasce desse compartilhamento de experiências com outras pessoas. Parece um projeto muito solitário porque o livro é extremamente autoral, estou envolvido em quase todas as etapas, mas na verdade ele é fruto de muitas pessoas, até de dicas que eu ia recebendo, das pessoas que me acompanhavam. E o parque não para nunca de ter coisas novas. Acho que eu já visitei quase tudo, mas ainda tem coisa para ver e fazer. Acho que é impossível conhecer tudo.
Na seleção de fotos do livro é que você conseguiu registrar uma gama muito diferente de usos e de perfis de visitante. Desde corredor, ciclista, escalador até gestantes e pessoas com dificuldade de locomoção. Como isso foi pensado durante a produção do livro?
Uma preocupação que eu sempre tive é mostrar que o parque é de todos. Quando eu comecei a fotografar, eu percebi que se eu não tivesse essa preocupação, eu ia acabar só com a minha “patotinha”, os jovens que praticam esportes de aventura. E o parque não é só para gente. Existem inclusive trilhas adaptadas, então tem fotos de cadeirantes, de grávida, de bebê. Eu tive essa preocupação de fazer o livro mais inclusivo possível, não só de atividades, mas de perfis também, com pessoas negras, LGBTQIA+, mais velhas. Foi uma preocupação que eu tive, de mostrar que o parque é para todos, inclusive independente da idade. Porque o propósito do meu trabalho sempre foi o de aproximar as pessoas da natureza. Então se eu não deixo claro que o parque é para todos e deixo de focar em todos os públicos, eu vou aproximar só os ciclistas, os escaladores, os montanhistas, quando na verdade eu quero que idosos, grávidas, crianças, todos tenham contato com a natureza no parque.
Tem obstáculos, claro. O Parque Nacional da Tijuca deveria ser mais acessível ainda, melhor estruturado, porque ele é uma porta de entrada para natureza não só pro carioca, mas pro brasileiro. E no Setor Floresta, por exemplo, você não tem nada, só o Restaurante Esquilos, não dá para comprar um sanduíche. Eu queria ver o parque mais estruturado e ainda mais convidativo para a sociedade. É esse contato que gera encantamento. Tem uma frase que meu pai falava muito que eu amo que é “a gente só cuida do que a gente conhece”. É isso. Nós precisamos fazer as pessoas desenvolverem esse carinho e afeto pelo parque nacional.
Por falar em desafios, um dos setores do Parque Nacional da Tijuca, o Pretos Forros, não possui visitação estruturada por conflitos e problemas de segurança pública. Você conseguiu registrar algo desse setor?
O Parque tem quatro setores, o A, B e C todos têm pontos retratados no livro, mas o D, que é o Pretos Forros, não tem nenhum, justamente por esses problemas de segurança pública. Então só tem duas fotos. Uma que eu fiz da janela do avião, de cima, e outra que eu fiz de drone a partir do Pico do Perdido. Só tem essas fotos. Tanto por questões de segurança quanto para não estimular a visitação lá, porque realmente é uma área de conflito. Hoje, o uso lá, no Morro do Cardoso Fontes, é principalmente religioso, muito mais do que recreativo.
Ao longo desses oito anos de imersão, sua relação com o Parque Nacional da Tijuca mudou?
Eu acho que o que mais mudou foi minha relação de cuidado com o parque. Acho até que quando somos mais jovens somos menos responsáveis. Antigamente eu achava normal dormir na Pedra da Gávea, não me dava conta de que era invasão de unidade de conservação. Acho que esse respeitar as regras foi o que mais mudou. Hoje quando eu vejo pessoas com cachorro no parque eu dou um toque de que não pode, por exemplo. Não podemos usar o parque como o quintal da nossa casa, temos que respeitar ele como parque nacional, como unidade de conservação de proteção integral. Tem muita gente que frequenta a Floresta da Tijuca e não sabe que é uma área protegida. É importante deixar claro que é um parque nacional e que tem regras, que não pode levar cachorro, deixar lixo, subir drone, alimentar os animais. O que me leva de volta à frase do meu pai, de que a gente só cuida do que a gente conhece. Quanto mais eu fui conhecendo, mais eu fui cuidando e querendo fazer a minha parte para deixar o parque bem cuidado. E acho que ficar mais velho também ajuda [risos], porque a gente fica mais responsável.
Ficha técnica
Livro: “Parque Nacional da Tijuca”
Fotos: Vitor Marigo
Texto: Yasmin Narciso e Vitor Marigo
Projeto Editorial: Vitor Marigo
Capa Dura, 31x23cm
216 páginas
319 fotografias
O livro é realizado com recursos da Lei Rouanet e Lei do ISS, com patrocínio das empresas E.Tamussino e Paineiras-Corcovado.
Fonte: Eco Jornalismo
Biografia
José Vicente: do inconformismo do racismo à criação da Universidade Zumbi dos Palmares
Published
2 meses agoon
27 de outubro de 2024By
Fato novo
Fundador e reitor da Zumbi destaca que a criação da instituição foi e continua importante na institucionalização das cotas para negros e outras ações afirmativas. Ele é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação
Oriundo de família rural e nascido em Marília, SP, o então entregador de biscoitos José Vicente se tornou advogado e doutor em educação. Há quase 30 anos é uma das pessoas mais atuantes na quebra do racismo estrutural e das desigualdades brasileiras. Os feitos de seus trabalhos têm gerado resultados expressivos. Um de seus marcos é a criação, em 2001, da Universidade Zumbi dos Palmares, na cidade de SP, o qual é o reitor (o primeiro vestibular veio em 2003).
É por conta da criação da Zumbi e de muitos outros trabalhos de impacto social que José Vicente é a personalidade homenageada do 18º Prêmio Top Educação* (saiba mais no final da entrevista), da revista Educação.
Confira, a seguir, a entrevista com José, que é colunista em grandes veículos jornalísticos e membro de conselhos renomados, incluindo o conselho editorial da revista Ensino Superior.
O que te levou a fundar a Universidade Zumbi dos Palmares?
Foi a constatação e o inconformismo da exclusão do negro do ensino superior público e privado e a total ausência de qualquer tipo de debate do impacto da discriminação e do racismo nos ambientes educacionais em São Paulo e no Brasil. Na época da fundação da Zumbi dos Palmares, por exemplo, os negros representavam 2% do corpo discente da Universidade de São Paulo (USP).
A criação da Universidade Zumbi dos Palmares foi o ponto de disrupção na condução dessas agendas no nosso país.
Criada em 2001, registrada em 2002 e com seu primeiro vestibular em 2003, a Zumbi é a primeira e ainda única universidade negra do país e da América do Sul.
Foi a partir da sua constituição e experiência que as demais instituições e governo se encorajaram na institucionalização das cotas para negros e outras ações afirmativas. Nos seus 20 anos de existência, a Zumbi foi importantíssima na sustentação e consolidação do processo das ações afirmativas, nas universidades, governos, nas instituições da sociedade civil e na arregimentação e sensibilização do ambiente corporativo público e privado.
A Zumbi foi a criadora da Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, o mais importante movimento empresarial de combate à discriminação no mercado corporativo, envolvendo mais de 100 empresas e instituições nessa ação. Criou também o Fórum Internacional de Equidade Racial Empresarial, o Índice de Equidade Racial Empresarial, e o primeiro Curso de Formação de Conselheiros Negros Empresariais das Américas.
Nessas duas décadas de história, como avalia o trabalho da Zumbi na inclusão da população negra no ensino superior e no mercado de trabalho?
Tendo iniciado suas atividades com o curso de administração, em 2004, ao longo da sua trajetória a Universidade Zumbi dos Palmares formou e qualificou mais de 10 mil jovens negros nos seus cursos de graduação, pós-graduação, extensão e nos cursos técnicos e livres. Com a implantação do Colégio Técnico Dandara dos Palmares, da Unibella (Universidade da Beleza), Unisamba (Universidade do Samba) e da Afrosênior (Universidade da terceira idade) e os Climáticos, a Zumbi, além de cumprir integralmente sua missão de promover inclusão, formação e qualificação dos jovens negros na educação e no ensino superior, oportuniza a toda a sociedade o acesso à educação e ao conhecimento, à preparação e à inclusão no mercado de trabalho, à inclusão produtiva, ao acesso cultural e esportivo e ao meio ambiente protegido e sustentável.
O que a Sociedade Afro-Brasileira de Desenvolvimento Sociocultural (Afrobrás), criada por você em 1997, tem feito?
A Afrobrás é o organismo social instituidor de todas as ações estruturantes dessa agenda de empoderamento e fortalecimento do negro brasileiro. Ela criou e instituiu a Universidade Zumbi dos Palmares, a Iniciativa Empresarial pela Igualdade Racial, o Colégio Técnico Dandara dos Palmares, o Museu da História do Negro, a Virada da Consciência Negra, o Troféu Raça Negra, o Programa Televisivo Negros Em Foco, a FlinkSammpa — Festa Internacional da Literatura Negra, a Corrida da Consciência, o Concurso Estudantil Afrominuto. Além disso, realiza as ações de advocacy perante os governos, campanhas e movimentos de transformação social como a Campanha Cotas Sim, Movimento Ar: Nós Queremos Respirar, Movimento Racismo Zero, o Procon Racial, o Serviço Acolhe de Proteção ao Consumidor. As grandes ações de afirmação da negritude desde as cotas nas universidades, no serviço público, no mercado de trabalho, no congresso e nos veículos de comunicação, têm o protagonismo ou a participação relevante da Afrobrás.
Em parceria com a prefeitura, a Universidade Zumbi dos Palmares também integra o projeto do Museu da História do Negro, em São Paulo, SP. Qual a importância de se criar esses espaços?
De forma injustificada e incompreensiva, o país que escravizou os negros por quase 400 anos nunca se interessou ou se preocupou em inventariar esse histórico que compõe a trajetória histórica e evolutiva do país.
As contribuições dos negros para a formação do país e da sua cultura constituiu um legado de incomensurável valor e integra a própria essência do povo brasileiro. Ainda assim, não existe um equipamento museológico constituído com esse propósito. Não existe um Museu Nacional da Escravidão num país que escravizou mais de cinco milhões de pessoas por mais de 350 anos.
Por esses motivos entendemos que uma maneira assertiva e de grande valor para a celebração dos nossos 20 anos [da universidade], seria dotar nosso país do primeiro museu com essa finalidade e propósito. Assim, em parceria com a prefeitura e com o governo do estado, esse ano estaremos dando início à construção do Museu da História do Negro de São Paulo que, além de peças e documentos, contará com um centro cultural para proporcionar o convívio, a integração e o reforço da identidade e da cultura negra com exposições, biblioteca, cinemateca, cursos e exibições de arte, dança, cinema, música e teatro.
Devido ao racismo estrutural, o Anuário da Educação Básica e outros estudos constatam que, no ensino básico, o índice de aprendizagem em português e matemática de estudantes negros(as) é menor do que de estudantes brancos(as). Quais parcerias e ações são necessárias para diminuirmos/quebrarmos essa realidade inaceitável?
A ação mais imediata e profunda para combater a desigualdade entre negros e brancos precisa e tem que estar no espaço [escolar] e equipamentos educacionais. Ali existe um abismo que separa negros e brancos no acesso e no desenvolvimento igualitário de suas competências e habilidades educacionais, sociais e emocionais.
Seja por conta da discriminação e hostilidade dos ambientes educacionais, seja por conta da indiferença e despreparo para tratar as diversas facetas que impactam mais intensivamente os jovens negros e periféricos, os resultados finais do processo educativo sempre irão ter distorções e desiquilíbrios entre estudantes negros e brancos.
Dessa forma é indispensável que o governo, escolas e sociedade juntem esforços para enfrentar esse grande desafio. As escolas podem formar e qualificar os professores para implementarem a Lei da História do Negro e da África, por exemplo. As universidades podem fortalecer essas dimensões na formação dos futuros professores, bem como produzir estudos e pesquisas dirigidas para conhecer e desenvolver estratégias e tecnologias de superação. A sociedade pode fortalecer o debate sobre a importância de enfrentar e combater o racismo. O Congresso pode produzir e aprimorar leis para combater o racismo e fortalecer as ações afirmativas. E o governo pode construir e ampliar políticas públicas e medidas dirigidas para fortalecer o conjunto das ações em andamento.
*Prêmio Top Educação
Em sua 18ª edição, o Top é uma votação espontânea na internet realizada pela revista Educação e tem como objetivo apontar as marcas mais lembradas entre as empresas que atuam na área de educação (conheça as marcas vencedoras). Desde o ano passado, a equipe editorial da revista Educação homenageia uma entidade e uma personalidade que tem impactado o setor.
Este ano, além de José Vicente ser a personalidade homenageada, a entidade homenageada é a Fundação Itaú. Clique aqui para ler.
Em 2023, a personalidade homenageada foi Mozart Neves Ramos, titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, do IEA da USP e secretário de Educação do Estado de Pernambuco (2003-2007). Clique aqui para saber mais.
Já o Instituto Ayrton Senna foi a entidade homenageada do ano passado devido ao esforço de disseminar há pelo menos 10 anos aos educadores e educadoras do país o que são habilidades socioemocionais e como inseri-las nos espaços de aprendizagem. Clique aqui para saber mais.
Fonte: Revista Educação
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