Alerta é de relatora especial da ONU, que aponta vulnerabilidade de comunidades tradicionais; relatos de ativistas revelam ataques em Mato Grosso do Sul, que destacam impunidade; indígenas também impulsionam agendas climáticas e dados mostram aumento de processos judiciais relacionados às mudanças climáticas em todo o mundo
Enquanto líderes e representantes indígenas de todo o mundo se reuniam na sede das Nações Unidas, a relatora especial da ONU sobre a situação dos defensores de direitos humanos, Mary Lawlor, destacou uma realidade alarmante: os ativistas indígenas e quilombolas brasileiros estão entre os mais vulneráveis à violência.
Durante o Fórum Permanente sobre Questões Indígenas, que aconteceu até a última sexta-feira, Nova Iorque, a ONU News falou com duas representantes do Brasil que compartilharam relatos de ataques. Elas foram vítimas enquanto lutavam pela causa indígena em Mato Grosso do Sul.
“Olho do furacão”
O estado brasileiro, que abriga a terceira maior população indígena do país, também se destaca no relatório da perita da ONU devido ao alto número de casos de violência contra defensores dos direitos indígenas.
Anúncio
A professora da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul e especialista em direito indígena, Tatiana Ujacow, contou sobre casos e destacou que a região é o “olho do furacão” para muitas questões indígenas.
“Nós sabemos que às vezes as pessoas procuram intimidar tanto alguém que está ali na defesa dos direitos dos povos indígenas, como a própria liberdade religiosa deles é ameaçada muitas vezes e ameaçadas com tentativas e consumação de crimes, queimada das casas de reza que vem da cultura tradicional dos povos indígenas. Sabemos dessa ameaça também que foi relatada por esse candidato que teve pessoas ali armadas ao seu entorno. Então, às vezes a tentativa também é velada, como as pessoas que estão subliminarmente ali fazendo um tipo de coação para os defensores das causas indígenas. E nós, como ativistas indígenas, também sofremos disso. Essa discriminação, que é bárbara em Mato Grosso do Sul, que pelo último censo é o estado com a terceira maior população indígena. Nós sabemos que ali é como se fosse ali o olho do furacão, porque as pessoas não respeitam os direitos dos povos indígenas”
A procuradora municipal em Campo Grande e ativista, Samia Barbieri, também compartilhou seu relato. Ela destacou a importância da pauta indígena e de desenvolvimento andarem lado a lado.
“Essa realidade é muito comum no Brasil e os ativistas de direitos humanos. Eu digo que, em especial os ativistas de direitos humanos, de povos indígenas, em especial de Mato Grosso do Sul e em Campo Grande, em Dourados, houve dois casos que eu posso lhe relatar. Um foi de tentativa de retirada de companheiros da Comissão Permanente de Assuntos Indígenas da Estrada e a segunda foi uma reintegração e retirada de indígenas de uma fazenda sem a observância do Manual de Direitos Humanos da Presidência da República, que nós exigimos e fomos absolutamente rechaçados, ameaçados de sermos até presos. E uma colega nossa foi detida. Ele era funcionário da Funai, Então não é uma ou duas vezes, são várias vezes. E não existe uma política de defesa de ativistas de direitos humanos no Brasil. Existem sim, violências e mortes, e elas não são relatadas como deveriam”
Impunidade sistêmica
Em comunicado após visita ao Brasil, Mary Lawlor destacou que a “impunidade sistêmica e os interesses econômicos estão matando defensores de direitos humanos um após o outro”.
Para a especialista, o país precisa priorizar a demarcação e titulação de terras, que desponta como a principal causa da maioria dos ataques contra defensoras e defensores de direitos humanos.
A relatora especial da ONU afirmou em seu comunicado que o governo brasileiro tem conhecimento do risco que correm os defensores de direitos humanos, mas ainda não implementou estruturas necessárias para proteger as vítimas.
Anúncio
Sobre os ataques contra indígenas, quilombolas e membros de outras comunidades tradicionais, ela destaca que, em muitos casos, os autores dos ataques são conhecidos. “No entanto, a impunidade por esses crimes continua desenfreada”.
Avanços nos assuntos indígenas
Ainda com as dificuldades, as ativistas entrevistadas pela ONU News apontam que houve progresso em diversas pautas indígenas, sobretudo em representatividade e na participação dos jovens.
“Voltando aqui o tema dos jovens indígenas, nós percebemos que mais e mais eles estão se posicionando, sem claro, esquecer os conhecimentos tradicionais. E o que eu acho muito bonito na cultura é o respeito pelos ancestrais, pela sabedoria que veio sendo passada de geração em geração. Eles estão procurando hoje, através das mídias todas sociais, se colocar realmente. Eles precisam desse olhar, trazer os seus anseios, os seus problemas, as suas reivindicações. Isso eles estão fazendo através das mídias. O que eles precisam. O que a gente percebe que precisam é justamente ter esse espaço reconhecido. A representatividade também está acontecendo bastante, pelo menos no estado de Mato Grosso do Sul, com várias candidaturas esse ano, para que eles busquem por eles mesmos as soluções dos problemas e buscando uma representatividade política”
Para Samia Barbieri, a representatividade indígena impulsiona o avanço de outra pauta: a climática.
“Hoje a gente fala não só de lideranças políticas, mas de comunicadores de uma forma mais ampla, e eu acho que isso veio através da participação deles no cenário internacional, na Conferência das Partes, nas COPs, e na Conferência Climática também que eles participam, participaram e se saíram muito bem, porque as ideias são muito interessantes, são ideias futuristas. Por exemplo, hoje a gente vive a questão do câmbio climático. Olha que situação importantíssima deles. Como os defensores do reflorestamento da floresta sem nos primeiros a sofrer a questão do clima. Então, de antemão, eles já estão colocando essa questão e já colocaram essa questão aqui em 2007 no Fórum da ONU e vem falando disso até hoje.”
De acordo com dados do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente, Pnuma, dobrou o número de processos judiciais relacionados às mudanças climáticas globalmente desde 2017.
Anúncio
O relatório não detalha o número de processos iniciados por povos indígenas, mas observa que esses também estão aumentando. Nos casos, os indígenas argumentam que a degradação ambiental está ameaçando sua cultura, seu acesso a alimentos e água e suas vidas.
Com mais de 100 nações garantindo o direito a um ambiente limpo, um número cada vez maior de povos indígenas também está entrando com ações judiciais para responsabilizar os governos pelos compromissos assumidos nos acordos ambientais internacionais, como o acordo de Paris sobre mudanças climáticas.
You actually make it seem so easy with your presentation but I in finding
this topic to be really something that I think I might never understand.
It seems too complex and very wide for me. I’m having a look forward on your subsequent put up,
I’ll attempt to get the hold of it! Lista escape roomów
Questão racial daquele que é considerado maior escritor brasileiro de todos tempos tem se tornado bandeira importante para afirmação e valorização da população negra
No Dia da Consciência Negra, a figura de Machado de Assis, um dos maiores ícones da literatura brasileira, é um lembrete das contradições do racismo no Brasil.
Negro e criado em meio à profunda desigualdade social do século XIX, Machado alcançou um espaço majoritariamente branco, mas sua identidade racial foi muitas vezes silenciada ou minimizada pela história oficial.
Assinada pelo escrivão Olympio da Silva Pereira, a certidão de óbito de Joaquim Maria Machado de Assis, morto aos 69 anos em 29 de setembro de 1908, há 115 anos, traz uma informação curiosa, senão polêmica: a nona linha do formulário declara que sua cor era “branca”.
Sobretudo nos últimos anos, a questão racial daquele que é considerado o maior escritor brasileiro de todos os tempos tem se tornado uma bandeira importante para a afirmação e a valorização da população negra.
Anúncio
Mas o que pesquisadores contemporâneos têm descoberto é que, considerando documentos como a própria certidão de óbito e cartas antigas, a identidade racial de Machado de Assis é um assunto polêmico desde antes da morte dele.
O que leva a uma questão importante: como o próprio Machado de Assis se identificava?
“Nós não sabemos até o momento. Não há nenhum documento que tenha chegado até nós que traga essa informação, como o próprio Machado se identificava, como ele se via. Temos depoimentos só de terceiros”, afirma à BBC News Brasil a historiadora Raquel Machado Gonçalves Campos, professora na Universidade Federal de Goiás (UFG) e pesquisadora sobre a vida e a obra do escritor.
Um dos documentos citados por ela é a carta enviada pelo poeta português Gonçalves Crespo (1846-1883) a Machado, com data de 6 de junho de 1871.
“A Vossa Ex., já eu conhecia de nome há bastante tempo. De nome e por uma certa simpatia que para si me levou quando me disseram que era… de cor como eu”, diz trecho da correspondência.
Anúncio
Não se sabe como o escritor brasileiro reagiu ao ler a missiva, tampouco se conhece qualquer resposta que ele tenha eventualmente redigido de volta ao português. A professora Campos pontua que a expressão “de cor” era a mais aceita naquele momento histórico para descrever pessoas negras.
“[O relevante é que] Machado é visto como um homem ‘de cor’ por um escritor de seu próprio tempo”, salienta ela.
Pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), a historiador Cristiane Garcia traz outro elemento que pode indicar que o escritor, em vida, se via como negro.
“Eu pesquiso Machado de Assis quando jovem. Entre o final de 1854 e início de 1855, Machado de Assis passou a frequentar a tipografia de Francisco de Paula Brito, tipógrafo, editor e homem de letras, negro como Machado”, conta ela, à BBC News Brasil.
“A tipografia de Paula Brito foi a responsável pela imprensa negra de meados do século XIX, no Brasil. Não só isso: ali se organizava uma rede de homens negros que se ajudavam e protegiam, pelo menos até os primeiros anos da década de 1860”, aponta.
Anúncio
“E a condição de ser homem negro na sociedade da época é uma questão presente na produção deles, em alguns jornais que saíam da tipografia do Paula Brito, no posicionamento político, entre tantos outros aspectos presentes na trajetória desses homens. Machado de Assis foi um aprendiz desse grupo, cresceu muito com eles. Paula Brito o apresentou para uma rede de sociabilidade que possibilitou a abertura de novos caminhos profissionais para o jovem Machado de Assis.”
Pesquisador independente que já descobriu vários textos inéditos do escritor, o publicitário Felipe Rissato também afirma à reportagem que “não existe uma declaração de Machado de Assis acerca da cor de sua pele”.
“Quando fez seu testamento de próprio punho, em 1906, poderia ter incluído esse dado. Não que fosse obrigatório. E nada mencionou”, pontua ele.
“Fato é que Machado de Assis era mulato, filho de pai pardo, alforriado, e mãe branca.”
Um mês após a morte do escritor, o jornalista e escritor José Veríssimo (1857-1916) publicou um obituário sobre o amigo no Jornal do Commercio, texto este intitulado ‘Machado de Assis: impressões e reminiscências’.
Anúncio
Nele consta a seguinte frase: “mulato, foi de fato um grego da melhor época”.
O texto provocou reação em outro amigo de Machado, o jornalista, historiador e político Joaquim Nabuco (1849-1910).
“Ele escreveu uma carta ao Veríssimo elogiando o obituário, mas dizendo que ele, Veríssimo, deveria retirar este trecho para o caso de uma futura publicação em livro do texto”, comenta Campos.
“Eu não o teria chamado mulato e penso que nada lhe doeria mais do que essa síntese”, anotou Nabuco.
“Rogo-lhe que tire isso, quando reduzir os artigos a páginas permanentes. A palavra não é literária e é pejorativa. O Machado para mim era branco, e creio que por tal se tomava: quando houvesse sangue estranho, isso em nada afetava sua perfeita caracterização caucásica. Eu pelo menos só vi nele o grego.”
Há outro registro contemporâneo a Machado sobre como os outros o viam. Trata-se do livro ‘Machado de Assis: Estudo comparativo de literatura brasileira’, publicado em 1897 pelo crítico Sylvio Romero (1851-1914).
Anúncio
Na obra, o autor afirma que Machado de Assis é “um genuíno representante da sub-raça brasileira cruzada, por mais que pareça estranho tocar neste ponto”.
“Mas a crítica não existe para ser agradável aos preconceitos dos homens, que devem ter ânimo bastante para libertar-se de infundados prejuízos”, prossegue Romero.
“Sim, Machado de Assis é um brasileiro em regra, um nítido exemplar dessa sub-raça americana que constitui o tipo diferencial de nossa etnografia, e sua obra inteira não desmente a sua fisiologia […]. Com certeza não o molesto, falando assim; e não pode ser por outro modo.”
Para Campos, “dentro da perspectiva racista de Sylvio Romero, ele ataca e diminui o Machado de Assis, qualificando-o como mestiço [com a expressão ‘sub-raça brasileira’]”.
Filho de um descendente de escravos alforriados, Francisco José de Assis, e de uma lavadeira portuguesa oriunda dos Açores, Maria Leopoldina Machado da Câmara, o escritor foi fotografado algumas vezes — mas a baixa qualidade das imagens e o fato de serem em preto e branco, dadas as limitações técnicas da época, ainda hoje suscitam debates sobre qual seria a real cor de sua pele.
Anúncio
Biografias
Em artigo publicado nos anais do VI Seminário do Programa de Pós-Graduação em Literatura Brasileira, de agosto de 2020, Raquel Campos analisou a “cor e a identidade racial” nas biografias escritas sobre Machado de Assis.
Compilado de conferências proferidas entre 1915 e 1917, ‘Machado de Assis’, do advogado, jornalista e crítico Alfredo Pujol (1865-1930) traz apenas duas menções raciais sobre o escritor. Logo no início, ele pontua que seu biografado era filho de “um casal de gente de cor”.
Em seguida, quando ele descreve os primeiros anos de sua carreira de colaborador de jornal, enfatiza sua convivência com “as agruras criadas pela inferioridade de seu nascimento, pelos preconceitos de cor, pela sua grande pobreza”.
Até hoje considerada a mais influente biografia de Machado, a obra de Lúcia Miguel Pereira (1901-1959), ‘Machado de Assis: estudo crítico e biográfico’, de 1936, insiste bastante no aspecto racial do escritor. Segundo a análise de Campos, ela prefere chamá-lo de “mulatinho” mas também usa os termos “mestiço” e “pardinho”.
A ideia de Pereira era abordar Machado como alguém que nasceu com três grandes dificuldades — a pobreza, a cor e a epilepsia, da qual sofria — e, mesmo assim, ao superar essas questões, conseguiu vencer e se tornar o maior da literatura brasileira.
Na conversa com a reportagem, a professora Campos ressaltou que essa biografia tem muitas informações contestadas, mas que ali está dito que Machado “não gostava de referências à sua cor”e “que nunca utilizava a palavra mulato”.
Anúncio
Em ‘A Vida de Machado de Assis’, de 1965, o escritor e advogado Luiz Viana Filho (1908-1990) pouco se refere à cor e à identidade racial de Machado, embora recupere a ideia de que ele era “como um grego”.
Mas há um ponto curioso trazido por esta obra: uma análise do ensaísta e jornalista Peregrino Júnior (1898-1983) que aborda o “embranquecimento” de Machado.
Viana Filho vê com naturalidade que o escritor, “uma flor da civilização”, houvesse optado por uma imagem mais caucasiana para ilustrar seu livro ‘Poesias Completas’, de 1901.
Para o biógrafo, o “tempo depurou a fisionomia de Machado, fazendo-o perder gradativamente os traços do mestiço” e “ao fim da vida dificilmente se dirá não ser um ariano”.
Em ‘Vida e Obra de Machado de Assis’, de 1981, o jornalista e teatrólogo Raymundo Magalhães Júnior (1907-1981) classifica o escritor como “amulatado” e diz que, quando havia ficado noiva dele, Carolina Xavier de Novais (1835-1904) teria afirmado que iria se casar com “um homem de cor”.
Anúncio
O professor de literatura francês Jean-Michel Massa (1930-2012), em ‘A Juventude de Machado de Assis’, de 1971, traz um subcapítulo chamado “J. M. Machado de Assis, um mestiço”, no qual afirma que ele “é, parece, mestiço”. Mas também pontua que “como muitos brasileiros, não é nem um homem de cor, nem, strictu sensu, um homem branco”.
‘Machado de Assis, Um Gênio Brasileiro’, livro de 2005 escrito pelo jornalista Daniel Piza (1970-2011) foi a última das biografias contempladas pela professora Campos em seu artigo.
Ela ressalta que, nele, “são esparsas as alusões à cor de Machado de Assis, que é referido sempre, nessas ocasiões, como mulato”.
“Lendo as biografias com os olhos do presente, chama a atenção a ausência de classificações de Machado de Assis como ‘negro’”, pontua a pesquisadora.
“Apesar da origem humilde, desde muito cedo Machado teve o acolhimento das pessoas certas para ter a formação autodidata que teve, aprendendo línguas, como o francês, e humanidades, fora dos cursos convencionais. Bem quisto no trabalho como funcionário público, bem como literato, embora não fosse uma unanimidade, Machado adquiriu o status que não se permitia a um homem negro, salvo raras exceções, daí a busca para se começar a entender a incógnita de seu embranquecimento”, comenta o pesquisador Rissato.
Anúncio
“Curioso é que tendo acesso às suas fotografias originais, vemos claramente os seus traços de homem mulato, o que deixa ainda mais inexplicável a cor ‘branca’ indicada em seu atestado de óbito”.
Compreensões da identidade racial
À reportagem, Campos comenta que “não sabemos se Machado se considerava negro mas, mais provavelmente no universo da especulação, considerando os testemunhos que temos, se ele se identificava racialmente provavelmente os termos que ele lidaria seriam ‘homem de cor’ ou ‘mulato’, não ‘negro’”.
Ela lembra que, parte de seus próprios estudos, é preciso compreender a maneira como as identidades raciais foram entendidas no Brasil do século 19 e ao longo do século 20.
“Há uma discussão que atravessa pela questão cultural, o conceito antropológico de cultura que enfatiza muito a singularidade do Brasil como uma nação mestiça”, afirma.
“Sabemos que no século 19 e no 20, essa mestiçagem era entendida como fator de inferioridade, obstáculo ao desenvolvimento nacional. Isso explica o caráter racial das políticas de imigração financiadas pelo Estado brasileiro, que selecionaram as populações alvo considerando um ideal de embranquecimento da população nacional.”
Nesse contexto, o embranquecimento do maior escritor brasileiro parecia fazer sentido.
Anúncio
“A partir da década de 1930, o Machado de Assis começa a ser visto como mestiço, e aí o grande escritor nacional correspondia justamente a um exemplo da identidade nacional mestiça. Machado de Assis passou então a ser tratado fortemente como mulato”, acrescenta a professora.
Assim, ao longo de boa parte do século 20 no Brasil, tratá-lo como mestiço ou mulato parecia ser a maneira entendida como correta.
“Havia esse ideal de democracia racial brasileira, uma construção criada, na verdade, para impedir o combate ao racismo estrutural”, afirma Campos.
É como se o Machado pudesse se assumir negro apenas em suas memórias póstumas, a bem da verdade. E isto tem tudo a ver com a ascensão do movimento negro. É por isso que, observa ela, o escritor aparece como negro justamente quando é “descoberto” pelos Estados Unidos, já nos anos 1960.
“Nessa época, Magalhães Júnior começa a recusar tal classificação. Para o crítico, o escritor brasileiro poderia ser considerado negro ‘do ponto de vista americano’. Já ‘segundo os nossos padrões’, seria mulato”, contextualiza a professora.
Anúncio
Para a especialista, é inegável que, sim, “houve um processo de embranquecimento de Machado” e isso está nítida na própria certidão de óbito, onde “fica explícito o apagamento da cor”. Mas esse percurso não pode ser achatado em uma linha reta. É permeado de complexidades culturais e sociais. “Uma questão controversa”, resume.
No meio desse então incipiente debate, a obra ‘Machado de Assis e o Hipopótamo’, de 1960, é interessante.
Ali, o jornalista e historiador Gondin da Fonseca (1899-1977) considera que levantar a questão da identidade racial de Machado é que seria uma conduta racista.
“Ele recupera essa perspectiva da democracia racial, dizendo que no Brasil todo mundo tem um pouco de sangue negro, todo mundo é mestiço, então não daria para falar que alguns são brancos, outros são negros”, diz Campos.
O apagamento da cor de Machado de Assis, então, também pode ter obedecido a essa perspectiva anacrônica de racismo.
Anúncio
Hoje
Se para o mercado literário norte-americano, Machado de Assis é visto como um escritor negro desde os anos 1960, no Brasil essa perspectiva é mais recente. Somente nos últimos anos, por exemplo, livros escolares passaram a defini-lo assim e as próprias fotografias dele passaram a ser restauradas de forma a enfatizar mais nitidamente aspectos afrodescendentes.
Além de reparar a história, tais esforços também ecoam políticas afirmativas requisitadas pelo menos desde o fim dos anos 1970 pelo movimento negro no Brasil. Em 2021, a Universidade Zumbi dos Palmares lançou a campanha Machado de Assis Real, um abaixo-assinado para que as editoras deixem de imprimir e comercializar livros em que o escritor apareça embranquecido.
Reitor da universidade, o advogado e educador José Vicente diz à BBC News Brasil que a campanha foi realizada porque “a cada momento em que somos surpreendidos por mais um dos efeitos nocivos do racismo, que tenta apagar nossas existências, nossa história, entendemos e reafirmamos nossa missão e temos que agir”.
Para ele, o embranquecimento de Machado torna “perceptível o reflexo de como o brasileiro enxerga as pessoas negras no país, sempre as colocando em posições subordinadas e lhes tirando os próprios feitos”.
“A publicidade tem uma enorme responsabilidade com a construção do imaginário e ao reforçar estereótipos, ao embranquecer um personagem tão icônico do protagonismo negro na literatura temos a dimensão de quão doente está nossa sociedade. Não havia a possibilidade de nos silenciarmos. Como uma instituição educacional a Zumbi dos Palmares liderou ações com o viés de reparação, educação e conhecimento”, acrescenta.
Anúncio
“Desde o período pós-abolição não têm sido poucas as iniciativas para o embranquecimento da população negra. O processo de branqueamento pelo qual Machado de Assis veio passando diz respeito ao imaginário social que o povo brasileiro construiu em relação à população negra, que é vista como inferior e incapaz.”
O manifesto divulgado pela campanha sentenciava: “Machado de Assis era um homem negro. O racismo o retratou como branco”.
Em 2011, a Caixa Econômica Federal envolveu-se em uma polêmica ao divulgar um comercial exaltando o fato — verdadeiro — de que Machado de Assis mantinha uma caderneta de poupança no banco. O vídeo foi ao ar com uma gafe: o ator que representava o escritor era branco. A campanha foi retirada do ar, o banco desculpou-se publicamente; no ano seguinte, o mesmo material, reeditado e desta vez com um Machado de Assis negro, voltou a ser exibido.
Machado de Assis também consta em verbete da ‘Enciclopédia Negra’, livro de 2021 de Flávio dos Santos Gomes, Jaime Lauriano e Lilia Moritz Schwarcz.
E vem sendo retratado assim não só em apostilas escolares, mas também em eventos públicos, como a exposição aberta no ano passado no Engenho Massangana, no Recife, que trouxe retratos de Jeff Alan de personalidades negras brasileiras, com destaque para Machado.
Anúncio
Campos nota que há uma mudança na abordagem. Antes, quando se falava em intelectuais negros do século 19, Machado não costumava constar no rol que agrupava nomes como André Rebouças (1838-1898), Luiz Gama (1830-1882) e José do Patrocínio (1853-1905).
“Até recentemente ele não ocupava esse lugar. Agora, sim”, pontua ela. “No Brasil de hoje, ele é, sim, um escritor negro.”
A professora Campos lembra que, “enquanto historiadora” que se debruça sobre as questões de cor em Machado, sua função “não é arbitrar essa questão”, mas sim mostrar como há uma historicidade nessa construção. Machado de Assis ora visto como branco, como grego. Machado de Assis de cor. Machado de Assis mulato, mestiço. Machado de Assis negro.
“Há uma expressão que diz que Machado de Assis é um escritor que nos lê. Por meio dele podemos pensar uma série de questões que dizem respeito à história do Brasil, inclusive a complexidade de nossa questão racial, marcada por uma população que conheceu e conhece a miscigenação”, pontua ela.
“Também compreendemos um pouco da história da luta antirracista, da discriminação racial. Tudo por meio da identidade racial de Machado de Assis”, acrescenta.
Anúncio
“A reivindicação de Machado de Assis como negro é muito recente. E, insisto, do meu ponto de vista ela se explica por uma modificação do que é o próprio debate sobre raça, racismo, mestiçagem e identidade nacional. Isto levou a uma problematização dessa categoria de mulato em consonância ao mito da democracia racial”, afirma Campos. “E levou a uma modificação da compreensão da identidade racial de Machado de Assis.”
A questão, portanto, é mais complicada ainda do que saber se Capitu traiu ou não Bentinho. Estas são as memórias póstumas de Machado de Assis. E não parecem haver vencedores para ficar com as batatas.
Reportagem publicada originalmente em 28 de setembro de 2023.
Relatório final da investigação foi enviado ao STF
A Polícia Federal (PF) concluiu nesta quinta-feira (21) o inquérito que apura a existência de uma organização criminosa acusada de atuar coordenadamente para evitar que o então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva, e seu vice, Geraldo Alckmin, assumissem o governo, em 2022, sucedendo ao então presidente Jair Bolsonaro, derrotado nas últimas eleições presidenciais.
Em nota divulgada há pouco, a PF confirmou que já encaminhou ao Supremo Tribunal Federal (STF) o relatório final da investigação. Entre os indiciados pelos crimes de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e organização criminosa estão Bolsonaro; o ex-comandante da Marinha Almir Garnier Santos; o deputado federal Alexandre Ramagem (PL-RJ), ex-diretor da Agência Brasileira de Informações (Abin); o ex-ministro da Justiça Anderson Torres; o ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI) Augusto Heleno; o tenente-coronel do Exército Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro; o presidente do PL, Valdemar Costa Neto; e o ex-ministro da Casa Civil e da Defesa, Walter Souza Braga Netto.
Outras 29 pessoas foram indiciadas. São elas: Ailton Gonçalves Moraes Barros; Alexandre Castilho Bitencourt da Silva; Amauri Feres Saad; Anderson Lima de Moura; Angelo Martins Denicoli; Bernardo Romão Correa Netto; Carlos Cesar Moretzsohn Rocha; Carlos Giovani Delevati Pasini; Cleverson Ney Magalhães; Estevam Cals Theophilo Gaspar de Oliveira; Fabricio Moreira de Bastos; Fernando Cerimedo; Filipe Garcia Martins; Giancarlo Gomes Rodrigues; Guilherme Marques de Almeida; Helio Ferreira Lima; José Eduardo de Oliveira e Silva; Laercio Vergilio; Marcelo Bormevet; Marcelo Costa Câmara; Mario Fernandes; Nilton Diniz Rodrigues; Paulo Renato de Oliveira Figueiredo Filho; Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira; Rafael Martins de Oliveira; Ronald Ferreira de Araujo Júnior; Sergio Ricardo Cavaliere de Medeiros; Tércio Arnaud Tomaz e Wladimir Matos Soares.
Segundo a PF, as provas contra os indiciados foram obtidas por meio de diversas diligências policiais realizadas ao longo de quase dois anos, com base em quebra de sigilos telemático, telefônico, bancário, fiscal, colaboração premiada, buscas e apreensões, entre outras medidas devidamente autorizadas pelo Poder Judiciário.
As investigações apontaram que os envolvidos se estruturaram por meio de divisão de tarefas, o que permitiu a individualização das condutas e a constatação da existência de ao menos seis núcleos: o de Desinformação e Ataques ao Sistema Eleitoral; o Responsável por Incitar Militares a Aderirem ao Golpe de Estado; o Jurídico; o Operacional de Apoio às Ações Golpistas; o de Inteligência Paralela e o Núcleo Operacional para Cumprimento de Medidas Coercitivas.
Anúncio
“Com a entrega do relatório, a Polícia Federal encerra as investigações referentes às tentativas de golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito”, informou a PF.
Entre 2012 e 2022, 79% das vítimas do sexo masculino eram negras
De acordo com um relatório do Instituto Sou da Paz, oito a cada 10 homens mortos por disparos de armas de fogo são negros. Entre 2012 e 2022, 79% das vítimas do sexo masculino eram negras.
O documento “Violência Armada e Racismo: o papel da arma de fogo na desigualdade racial”, com dados do Ministério da Saúde, foi divulgado nesta quarta-feira (20), Dia da Consciência Negra, e mostra que 38 mil homens foram mortos baleados no período. Inclusive, os homens negros são a maioria (68%) dos atendidos no sistema de saúde em razão de algum tipo de agressão armada.
“A desigualdade racial está no cerne da mortalidade por arma de fogo no país”, afirma Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz. “A violência armada que atinge sobretudo os homens negros é uma realidade que permanece ao longo do tempo e reflete as vulnerabilidades estruturais que afetam a população negra”, diz.
A maioria das vítimas são adultos entre 20 e 29 anos, cerca de 43% dos homicídios. Em seguida, estão as vítimas de 30 a 59 anos, que são 40%. A partir do recorte regional, o Nordeste é a região mais violenta do país: 57,9 mortes por disparados de armas de fogo a cada 100 mil homens. Na sequência, o Norte aparece com uma taxa de 49,1. Sul tem 23,2, e Sudeste, 16,1.
Anúncio
Os dados disponíveis sobre a autoria de agressões armadas mostram que em 46% dos casos os agressores são desconhecidos. Pessoas conhecidas pelas vítimas correspondem somente a 17% dos casos, sendo que 7% das agressões são cometidas por policiais. A idade das vítimas influencia o perfil dos agressores: no caso de crianças, os agressores conhecidos representam 32% das ocorrências. Já entre adolescentes e jovens adultos, a participação de policiais sobe para 9% dos casos de violência armada.
De acordo com o estudo, a idade das vítimas influencia significativamente os locais onde ocorrem agressões armadas. Embora 50% dos homicídios aconteçam em vias públicas, essa proporção varia entre as diferentes faixas etárias. Esse padrão evidencia a alta visibilidade da violência armada no Brasil, impactando diretamente a sensação de segurança pública.
“É preciso compreender os diferentes cenários regionais e implementar políticas públicas capazes de atuar sobre diversos fatores de risco, estruturais e conjunturais, que sujeitam a população negra à violência armada”, diz Carolina Ricardo.
Marketta
5 de julho de 2024 no 14:58
You actually make it seem so easy with your presentation but I in finding
this topic to be really something that I think I might never understand.
It seems too complex and very wide for me. I’m having a look forward on your subsequent put up,
I’ll attempt to get the hold of it! Lista escape roomów