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Meio Ambiente

Licuri, a coroa da Caatinga

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O licuri consegue florescer onde há pedra, calor e pouca água. É ali, nessa terra de sol imenso, que se tornam visíveis os detalhes de sua grandeza

Belo é quando o seco,
rígido, severo
esplende em flor.
 — Waly Salomão

No Semiárido brasileiro, o que à primeira vista parece seco, áspero e escasso revela, aos poucos, uma profusão de vida que aprendeu a brotar no limite. Na Caatinga – esse bioma de resistência, engenho e beleza – ergue-se, elegante, a palmeira coroada. No emaranhado típico da vegetação, ela finca seu tronco na terra pedregosa e insiste em florescer. É o licuri (Syagrus coronata), também chamado de ouricuri, aricuri, nicuri – ou, simplesmente, por quem dela depende, “a palmeira salvadora da vida”.

O nome científico carrega uma descrição lírica e precisa. Coronata vem do latim e alude à copa de folhas que se abre em forma de coroa, como um gesto silencioso de soberania. Já Syagrus, termo de origem grega, era usado para evocar o vigor das florestas e da vida selvagem – uma nobreza bruta, ancestral. De fato, o licuri é realeza na Caatinga: por tudo o que oferece – sustento, memória e continuidade.

Suas raízes retorcidas mergulham fundo em solos secos, onde outras plantas pelejam. O licuri consegue florescer onde há pedra, calor e pouca água. É ali, nessa terra de sol imenso, que se tornam visíveis os detalhes de sua grandeza. Um tronco, muitas vezes solitário, que pode alcançar até dez metros de altura; cachos repletos de frutos ovais – que adquirem cor de ouro quando maduros –, de polpa fina e casca fibrosa, que se abrem para revelar uma amêndoa: o núcleo de um coco oleoso e saboroso. Alimento de gente, ração de animais de cria, das aves e de um ecossistema inteiro.

Quem conhece o licuri no cotidiano sabe que ele não vive sozinho. De fato, o licuri cumpre uma função ecológica diversa e indispensável. Considerada uma espécie-chave da Caatinga, sua presença sustenta relações vitais para o equilíbrio do bioma. Todas as espécies de abelhas – mandaçaia, jataí, arapuá – se alimentam em suas flores. Em seus frutos dourados, aves e mamíferos encontram sustento durante quase todo o ano, entre eles, a arara-azul-de-lear (Anodorhynchus leari), espécie endêmica e ameaçada de extinção, que tem na amêndoa do licuri uma de suas principais fontes de alimento. Ao se nutrir dos frutos e dispersar suas sementes, as araras ajudam a perpetuar o ciclo da palmeira.

Outros animais também participam dessa teia: roedores como mocós, cotias e punarés enterram os cocos, que acabam germinando; emas e caititus os engolem inteiros e devolvem as sementes ao solo em suas fezes. Até os bois, cabras, cavalos e jumentos nos pastos fazem parte do circuito – o boi prefere a palha verde, o jegue e o burro, só a seca.

Ao redor do tronco, a palmeira serve de abrigo e de plataforma para uma diversidade impressionante de plantas epífitas — orquídeas, bromélias, cactos e samambaias que, sem extrair nutrientes da árvore, vivem agarradas ao seu corpo e florescem ali como numa floresta suspensa. Estudiosos já identificaram mais de 25 espécies associadas ao licuri em áreas de pastagem, mostrando como ela atua como um refúgio em ambientes alterados. Ora, o licuri carrega uma floresta em si.

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Sob sua copa coroada, o chão se transforma. A sombra suave protege o solo do sol direto, favorece o acúmulo de matéria orgânica e acolhe uma rica comunidade de microrganismos, que sobrevivem ali, ao abrigo do seu frescor. Ao redor de um único pé de licuri, a terra fica macia, forte, cheia de vida.

E, como se não bastasse, a palmeira convive — não disputa. Ao seu redor crescem pés de umbuzeiro, aroeira e angico, árvores nativas com as quais compartilha o tempo e o solo. Não há concorrência: há relatos de que ela pode viver assim, em harmonia, por mais de cem anos.

O ciclo do licuri também é o ciclo do ser humano que sempre viveu pela Caatinga: indígenas, quilombolas, vaqueiros, lavradores, rezadeiras, quebradeiras, camponeses, sertanejos, agricultores, extrativistas — povos que aprenderam a fazer do seco, sustento e caminho. Seu tempo marca o tempo de muita gente. Das mãos que colhem no chão aos braços que quebram o coco com ritmo e precisão aprendidos desde criança. A cultura da “cata” e da quebra do licuri é trabalho, sustento, tradição e cuidado.

Suas amêndoas são consumidas cruas, torradas, cozidas, transformadas em leite, azeite, farinhas, doces ou paçocas. Suas folhas viram teto, esteira, vassoura, chapéu, arte. Seu sumo já foi colírio e unguento; seu caule, chama; sua presença, altar. Das festas de São João ao fogão de lenha, do saber das parteiras às receitas escolares, o licuri está realmente por toda parte. E quando se pensa que acabou, há ainda mais: o bicho-do-coco – ou morotó –, larva que vive dentro da amêndoa, é também alimento e medicina, com alto valor financeiro agregado.

Esse povo, com sua sabedoria, nunca viu no licuri um recurso isolado, mas sim um modo para a vida. É convivência. Um pacto. O que a ciência hoje reconhece como “espécie-chave do bioma Caatinga”, as comunidades já chamavam, há muito tempo, de sagrada.

Mas esse ciclo virtuoso vem sendo rompido, há décadas, pelo avanço desenfreado daquilo que já estamos carecas de saber – o tal “progresso”. A sanha pelas práticas agropecuárias extensivas, monotemáticas, as queimadas, a mineração e até o puro e simples corte predatório têm feito os licurizais envelhecerem sem se renovar. E não é preciso muito esforço pra entender: sem a palmeira, tudo isso que falamos até agora corre o risco de desaparecer.

Em algumas regiões, como no Raso da Catarina, no norte da Bahia, há registros de declínio acelerado. A regeneração natural é quase inexistente. Resta, muitas vezes, um tronco solitário, carregando nas palhas secas as últimas lembranças de uma ecologia vibrante.

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A resposta a esse risco, no entanto, já floresce em mãos comunitárias. A Coopes, Cooperativa de Produção da Região do Piemonte da Diamantina, com sede em Capim Grosso, Bahia, é hoje uma das guardiãs mais expressivas do licuri. Sua história começa quando um grupo de pessoas da região se deparou com o desvalor imposto a este fruto abundante. O que era vendido por quase nada, destinado à fabricação de sabão, passou a ser transformado em produtos alimentícios e cosméticos. Esses produtos já chegaram a escolas, feiras internacionais e, sobretudo, à mesa das famílias sertanejas. Mais do que gerar renda, o trabalho da cooperativa tem resgatado o valor simbólico e ecológico do licuri.

Aliás, a Coopes teve papel fundamental na articulação que resultou na criação da Lei Estadual nº 13.908/2018, que reconhece o licuri como patrimônio biocultural do povo baiano. A lei protege essas espécies contra a supressão e promove seu cultivo dentro de práticas agroecológicas, associando biodiversidade, cultura alimentar e formas de uso tradicional. Também determina que o poder público incentive a criação de unidades de conservação, a inclusão do tema nos currículos escolares e o apoio técnico aos agricultores familiares.

Se o ser humano ajudar, com a autorização da natureza e a paciência do tempo, quem sabe a palmeira coroada possa, enfim, repousar em seu palácio de lagedos, araras, mandacarus e pôres do sol.

Repousar, ainda assim, servindo à vida.

E por entre os troncos da Caatinga e nas folhas longas e curvadas do licuri, talvez ainda se perceba essa vida — esperando cuidado.

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site fatonovo.net. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

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Fonte: ECO

Brasil

Após a COP30, defensores indígenas comemoram ganhos enquanto alertam sobre trabalho inacabado

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Ativismo e resultados na COP30: Maior presença indígena na história da conferência da ONU em Belém, Brasil, destaca a luta por direitos territoriais e a frustração com o plano de transição de combustíveis fósseis.


Presença Indígena na COP30 Atinge Recorde em Belém

A COP30, Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas, realizada em Belém, Brasil, marcou um momento histórico para a participação dos povos indígenas no cenário climático global. Devido à sua localização estratégica na proximidade da Amazônia, o evento foi informalmente denominado “COP Indígena”, refletindo o esforço do Brasil em ampliar essa representação.

De acordo com dados da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB), a conferência registrou a presença de mais de 5.000 participantes indígenas, com cerca de 900 deles possuindo credenciais de acesso às zonas de negociação, um número inédito nos 30 anos de história da COP.

Apesar da maior visibilidade, a participação nas decisões formais da ONU permanece limitada. Nas negociações, apenas os Estados-membros têm direito a voto. Os povos indígenas que não alcançaram o estatuto de Estado reconhecido internacionalmente não podem votar em decisões cruciais, como o roteiro para a eliminação dos combustíveis fósseis. Essa disparidade motivou ações de ativismo dentro e fora do local da conferência.

Mobilização e Ativismo Indígena Pressionam por Direitos

A COP30 foi palco de diversas ações de ativistas indígenas, que buscaram garantir que suas vozes e demandas fossem ouvidas, reafirmando o princípio de “eles não podem decidir por nós sem nós”. Em um dos momentos mais notáveis, ativistas, trajados em vestimentas tradicionais, cruzaram a segurança para uma zona reservada a delegados oficiais, ressaltando a urgência de sua inclusão.

Observadores como Kaeden Watts, especialista em política climática das tribos Māori da Nova Zelândia, notaram um contraste significativo em relação às COPs anteriores, onde as perspectivas indígenas eram frequentemente ignoradas ou dependiam da amplificação por aliados. Na COP30, houve um esforço de organização que resultou em maior cobertura midiática, com repórteres entrevistando diretamente líderes e manifestantes indígenas sobre direitos à terra e danos climáticos.

Resultados Tangíveis: Demarcação de Terras no Brasil

A pressão e a visibilidade geradas durante a conferência culminaram em medidas concretas por parte do governo brasileiro. Antes do encerramento da COP30, o governo anunciou a demarcação de terras para 27 povos indígenas em diversas regiões do Brasil. Além disso, foi assumido o compromisso de reconhecer 59 milhões de hectares adicionais de terras indígenas nos próximos cinco anos.

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O reconhecimento e a proteção dos territórios são centrais na defesa da justiça climática, visto que estudos científicos confirmam que terras indígenas demarcadas apresentam as menores taxas de desmatamento, atuando como barreiras naturais contra o avanço da destruição ambiental.

Avanços na Proteção dos Direitos Indígenas, Mas Frustração Climática

Os defensores indígenas compareceram à COP com o objetivo de garantir um plano claro para a transição energética global e o fim do desmatamento. Embora não tenham conseguido incluir todas as suas propostas no Mutirão Global (Global Stocktake), o acordo internacional não vinculativo da COP30, houve um avanço significativo em outro fórum.

Os países concordaram em reconhecer formalmente a importância de proteger os direitos indígenas, incluindo os direitos à terra, no Programa de Trabalho de Transição Justa (Just Transition Work Programme). Este programa da ONU visa apoiar os países na transição dos combustíveis fósseos.

Emil Gualinga, do Povo Kichwa de Sarayaku e membro do Fórum Internacional dos Povos Indígenas sobre Mudanças Climáticas, destacou o papel do Panamá em garantir que o Programa de Transição Justa incluísse uma referência ao direito dos povos indígenas ao consentimento livre, prévio e informado (CLPI) sobre o que ocorre em seus territórios. Este ponto é relevante, pois estudos indicam que depósitos de minerais críticos para a produção de energia livre de combustíveis fósseis são frequentemente encontrados em terras indígenas.

Apesar desse avanço, a maior decepção entre os ativistas foi o fracasso dos Estados-membros em se comprometerem com um plano específico e ambicioso para deixar a dependência dos combustíveis fósseis. A versão final do Mutirão Global foi considerada “diluída” e insuficiente para garantir que o aquecimento global se mantenha abaixo do limiar de 1,5 graus Celsius, limite considerado crucial pela ciência para evitar consequências catastróficas.

A Luta Continua em Outras Frentes

O desapontamento com o resultado do Mutirão Global não encerra a luta por justiça ambiental e climática. Gualinga enfatizou que a mobilização indígena se estende para além das conferências da ONU, citando o histórico de resistência de sua comunidade, Sarayaku, no Equador, que por décadas lutou contra a indústria petrolífera em suas terras. Em 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos deu ganho de causa aos Sarayaku, concluindo que o Equador violou seus direitos ao permitir a entrada da empresa sem o CLPI.

A defesa internacional segue ativa. No início deste ano, nações insulares do Pacífico, com a liderança de estudantes e advogados indígenas, obtiveram uma decisão histórica no Tribunal Internacional de Justiça (TIJ). O tribunal afirmou que os governos nacionais têm a obrigação legal de mitigar as alterações climáticas e compensar os prejudicados. Embora essa decisão não tenha sido reconhecida formalmente na COP30, o ativismo legal continua sendo uma ferramenta fundamental.

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Belyndar Rikimani, das Ilhas Salomão e membro do grupo “Estudantes das Ilhas do Pacífico que lutam contra as mudanças climáticas”, afirmou que, apesar da decepção, a pressão continuará “nos tribunais, nas salas de negociação e nas bases”. A visibilidade da resistência indígena na COP30 sugere que a mensagem dos povos tradicionais está ganhando ressonância no público global, indicando que a determinação pela autodeterminação e justiça climática não cessará.


Com informações de: Grist

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Brasil

COP30 em Belém eleva desinformação climática a problema de direitos humanos e governança global

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A COP30 em Belém reposicionou a Amazônia no centro da diplomacia climática, expondo a crise da integridade da informação como um obstáculo global à ação e à sobrevivência planetária. A especialista Maryellen Crisóstomo afirma que a desinformação climática é uma violação do direito humano à informação (Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos) e uma tática de captura corporativa. As declarações da Cúpula dos Povos e dos 20 países signatários na COP30 convergiram ao denunciar o papel das grandes corporações (mineração, agronegócio, Big Techs) na manutenção de narrativas que atrasam a descarbonização e criminalizam defensores ambientais, exigindo transparência algorítmica e reconhecimento dos saberes ancestrais no combate à crise

A realização da COP30 em Belém recolocou a Amazônia no centro da governança e diplomacia climática global, mas também expôs a urgência de combater a desinformação climática, vista como um problema que transcende o campo comunicacional e atinge a dimensão dos direitos humanos e da justiça climática.

O Direito à Informação como Pilar da Ação Climática ⚖️

A integridade da informação ambiental é considerada um direito humano estruturante e sua violação foi amplamente denunciada durante a COP30.

  • Direito Universal: À luz do Artigo 19 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, o acesso à comunicação e à informação é essencial, especialmente em um ecossistema digital polarizado e vulnerável à manipulação.

  • Violação e Conflito: Sem informação e o reconhecimento efetivo do direito à propriedade coletiva dos territórios, povos e comunidades são expostos a conflitos com megaempreendimentos (monoculturas, mineração para transição energética, energia eólica e solar), o que configura uma violação da Convenção 169 da OIT (Artigo 6º), conforme denunciado na Cúpula dos Povos.

Declaração de Belém: O Reconhecimento da Desinformação 📜

No contexto da COP30, foi assinada a Declaração sobre a Integridade da Informação sobre Mudança do Clima por 20 países, reconhecendo que a desinformação se tornou um obstáculo global que corrói a confiança pública e atrasa medidas urgentes.

  • Obstáculos Denunciados: A Declaração aponta explicitamente para:

    • Ataques a jornalistas e cientistas.

    • Incentivo à má informação e circulação de conteúdos enganosos em plataformas digitais.

    • Falta de transparência algorítmica.

  • Captura Corporativa: A Cúpula dos Povos reforça que este cenário está inserido em um contexto mais amplo de captura corporativa, financeirização da natureza, e avanço do extremismo, onde grandes corporações (mineração, energia, agronegócio e Big Techs) utilizam estratégias como greenwashing e descredibilização da ciência para manter o status quo.

Caminhos para a Governança Sustentável 💡

Tanto a ONU (por meio do Pacto Digital Global de 2024) quanto a Declaração sobre Integridade da Informação conclamam Estados e empresas de tecnologia a assumir responsabilidade compartilhada:

  • Responsabilidade das Plataformas: Exige-se que as empresas avaliem os impactos de sua arquitetura, forneçam dados para pesquisas independentes e implementem políticas de responsabilidade informacional.

  • Saberes Ancestrais: A Cúpula dos Povos oferece uma contribuição estrutural ao afirmar que o combate à desinformação passa pelo reconhecimento dos saberes ancestrais (indígenas, quilombolas, ribeirinhos) como tecnologias sociais para o enfrentamento da crise climática.

A especialista conclui que o avanço em estratégias climáticas depende de o multilateralismo restabelecer a integridade informacional. Para que as ações sejam eficazes, o direito humano à informação deve ser garantido em todas as suas dimensões, sendo o combate à desinformação uma estratégia de justiça climática e sobrevivência planetária.


Com informações: Diplomatique

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Meio Ambiente

Makoto Shinkai: “O Tempo com Você” Ganha Relevância como Crítica à Crise Climática e Desigualdade Urbana

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🌧️ Filme de Makoto Shinkai, sucesso de bilheteria e conhecido internacionalmente como Weathering With You, transcendeu a classificação de romance fantástico. A obra é revisitada como um retrato da vulnerabilidade urbana e da injustiça social, questionando a atribuição de responsabilidades da crise climática à juventude em um cenário de fenômenos meteorológicos extremos e falhas estruturais.


Da Fantasia ao Retrato Social: A Leitura Contemporânea do Filme

Lançado no Brasil em 2020 após o sucesso global de Your Name, o filme “O Tempo com Você” (Weathering With You) do diretor Makoto Shinkai estabeleceu-se como um marco na animação japonesa, mas com um diferencial notável. Embora mantenha o elemento de romance fantástico, a obra oferece uma crítica social mais direta e intensa. O filme aborda temas complexos como a desigualdade em ambientes urbanos, os impactos da instabilidade climática e os desafios enfrentados por adolescentes forçados a sobreviver sem estrutura de apoio.

Nos anos subsequentes ao lançamento, a narrativa de “O Tempo com Você” ganhou relevância adicional. Com a crescente frequência de eventos climáticos extremos e a percepção de limitações governamentais para lidar com eles, o filme passou a ser analisado como um registro sensível e politizado sobre as juventudes que carregam o peso de crises estruturais em cidades altamente desiguais, como a capital japonesa, Tóquio.

Tóquio: Chuva Constante e Vidas em Vulnerabilidade

A história se inicia com Hodaka, um jovem de 16 anos que foge de casa. O roteiro não detalha exaustivamente as razões da fuga, mas sugere um histórico de violência doméstica, indicado por marcas em seu corpo. Ele chega a Tóquio, uma cidade dominada por chuvas incessantes, um elemento que vai além do decorativo e interfere diretamente na vida cotidiana, na mobilidade, nas interações sociais e no ritmo urbano.

Hodaka vive a realidade de jovens que rompem com a segurança doméstica: busca por abrigos, escassez de alimentos e o enfrentamento constante à insegurança. A Tóquio do filme é retratada como um espaço de oportunidades limitadas para quem carece de condições financeiras e de uma rede de apoio.

É nesse ambiente que ele conhece Hina Amano. A adolescente, responsável por cuidar do irmão mais novo, tenta manter a casa com trabalhos temporários. A descoberta da habilidade de Hina de interromper a chuva temporariamente transforma sua rotina. Juntos, os jovens exploram esse “dom” como um serviço pago para quem deseja realizar atividades ao ar livre. O filme trata essa habilidade como um recurso que, embora gere ganhos imediatos, também provoca desgaste direto na saúde e na integridade física de Hina.

O Peso da Solução Individual na Crise Coletiva

Essa dinâmica é central para a crítica social da obra, pois demonstra como indivíduos vulneráveis são frequentemente pressionados a oferecer soluções singulares para problemas que são, intrinsecamente, coletivos e estruturais.

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A Crítica Social: Quem Paga Pela Crise Climática?

“O Tempo com Você” aborda a crise climática de forma tangível, sem recorrer a alegorias distantes ou discursos moralizantes. A Tóquio apresentada vive em risco constante de alagamentos, interrupções de serviços e súbitas instabilidades ambientais. A inação ou a incapacidade da cidade em lidar com esses fenômenos faz com que os efeitos recaiam de forma desproporcional sobre as camadas mais pobres e precarizadas da população.

A narrativa questiona a tendência social de atribuir responsabilidades desproporcionais aos grupos mais frágeis. O dom de Hina, que poderia ser visto como uma benção, rapidamente se transforma em uma exigência social. Sua capacidade de alterar o clima é tratada como uma solução mágica para danos ambientais acumulados, resultantes de anos de decisões políticas inadequadas.

Makoto Shinkai levanta três pontos centrais na discussão:

  • Pessoas comuns são obrigadas a enfrentar crises que não causaram.

  • Os mais pobres e vulneráveis são sempre as primeiras vítimas de desastres ambientais.

  • Discursos sobre responsabilidade individual frequentemente desviam o foco dos atores com real poder de influência nas políticas climáticas (corporações, governos).

O filme, ao evidenciar a injustiça de atribuir à juventude a solução para problemas estruturais que ultrapassam gerações, se posiciona de forma oposta a interpretações que o classificam como uma culpabilização dos jovens.

Estética e Escolhas Narrativas

O diretor Makoto Shinkai mantém a excelência visual que marcou seus trabalhos anteriores. A animação se destaca pelos cenários urbanos hiper-detalhados, pela iluminação precisa e pela minuciosa representação da água, dos reflexos nas ruas e da atmosfera de chuva. A estética, no entanto, não é meramente um adorno, mas uma parte crucial da narrativa, mostrando a cidade como um espaço real que impõe dificuldades.

O final do filme se tornou o ponto mais discutido. Hodaka, o protagonista, toma a decisão de salvar Hina, mesmo sabendo que essa escolha resultará na continuidade das chuvas incessantes sobre Tóquio, impedindo a normalização climática. Enquanto alguns críticos ocidentais interpretaram a decisão como individualista, uma análise social e política sugere que o filme questiona a prática de sacrificar a vida dos mais vulneráveis em nome de um bem-estar coletivo que não se mostrou capaz de protegê-los. A pergunta final do filme permanece: quem deve, de fato, suportar o peso da crise climática?


Com informações da: Revista Fórum

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