A exploração de petróleo no Peru gera milhões para obras públicas, mas, em 2023, apenas metade dos recursos chegou aos municípios amazônicos
O porto de Mazán, no estado amazônico de Loreto, no Peru, tem um cais improvisado e mal construído. Suas rampas, corroídas em vários pontos, parecem estar prestes a desabar. Quem chega ao município se depara com uma margem tomada por detritos plásticos, onde crianças e jovens brincam descalços.
O município é banhado pelo rio Napo, afluente do gigante Amazonas. Ali, o transporte fluvial começa às seis da manhã. É nesse horário que Aldo Alexis Tuesta Fung, de 18 anos, começa a descarregar mercadorias para abastecer empresas locais. Para isso, precisa atravessar passarelas de madeira estreitas e instáveis. Ele trabalha até o meio-dia. Depois, descansa com um mergulho no rio.
“Mazán está crescendo, mas nada melhora. Há pobreza, e o prefeito não faz nada. Nós deveríamos ter um bom mercado, uma boa praça e um porto decente. Olhem o estado disto aqui”, disse ele, apontando ao redor.
Não há sinais de investimentos em melhorias urbanas. A única obra a ser inaugurada é uma escultura de um homem segurando um pirarucu, o peixe típico dos rios amazônicos e sustento para muitas comunidades, acompanhado de letras coloridas e em maiúsculas dizendo: MAZÁN.
O pessimismo do jovem Tuesta Fung sobre as condições de vida dos pouco mais de 14 mil habitantes de Mazán tem respaldo em estatísticas oficiais. Mais da metade da população, dedicada principalmente à agricultura e pesca, não consegue comprar nem uma cesta básica para uma família por mês, segundo dados do Instituto Nacional de Estatística e Informática (INEI).
Na maioria das casas, de madeira ou tijolos, há eletricidade apenas por algumas horas pela manhã e à noite, enquanto a água potável chega duas ou três vezes por semana. Além disso, 57% dessas moradias não têm banheiro, segundo números do INEI.
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Mazán está crescendo, mas nada melhora. Há pobreza, e o prefeito não faz nada. Nós deveríamos ter um bom mercado, uma boa praça e um porto decente. Aldo Alexis Tuesta Fung, jovem morador de Mazán
As obras refletem o abandono do município: várias construções públicas estão pela metade, ruas seguem sem pavimentação, e o lixão, a menos de dez minutos de carro do centro, exala um cheiro pútrido e compõe uma cena desoladora para a cidade.
As deficiências contrastam com os mais de 14 milhões de soles (R$ 22 milhões) previstos em 2025 para Mazán, zona de passagem do petróleo extraído em Loreto. O valor representa 64% do orçamento municipal no ano, de acordo o portal de Transparência Econômica, que divulga a aplicação dos recursos públicos do Peru.
Embora não haja operações diretamente em seu território, o município recebe parte dos recursos pagos pelas petroleiras ao Peru. Esse montante serve para promover o desenvolvimento local, mas nossas análises dos dados públicos mostram que os repasses não têm cumprido seu papel de aliviar as condições de pobreza do estado.
Para entender mais profundamente essa contradição, a equipe do veículo peruano OjoPúblico esteve em Loreto em outubro de 2024. Essa apuração integra o projeto Até a Última Gota, que explora os impactos da produção petrolífera na Amazônia.
Em busca de compensação por impacto
Na Amazônia peruana, a atividade petrolífera começou há mais de 50 anos. Em 1971, a estatal Petroperú descobriu as primeiras reservas na bacia do rio Corrientes, em Loreto. A partir daí, começou uma verdadeira corrida pela exploração, que chegou a ter 14 empresas, nacionais e estrangeiras, operando na zona.
Desde então, surgiram debates e pressões sobre a divisão dos recursos gerados pela exploração de recursos naturais. O sistema de redistribuição foi sendo estabelecido, entre as décadas de 1970 e 1980, de forma independente em cada estado.
A primeira regulamentação, em 1976, focou em Loreto, onde a população já enfrentava décadas de exploração de madeira e borracha, além de violência contra indígenas ligada às indústrias extrativistas. Diante desse histórico, os moradores exigiram compensação: que as petroleiras pagassem uma taxa de 10% sobre a produção — pedido que foi aprovado.
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Décadas depois, em 2001, uma lei nacional foi publicada e ampliada para outros setores extrativistas, como mineração, gás, hidroenergia, pesca e extração madeireira. No caso do petróleo na região de Loreto, até 2011 vigorava uma alíquota de 10% sobre a produção, com os recursos destinados a “obras de impacto regional” e previstos nos orçamentos dos governos locais. A partir de 2012, essa alíquota foi elevada para 15%.
Na prática, há duas formas de arrecadação. De um lado, está a chamada regalía, um pagamento direto feito pelas empresas ao Estado pelo direito de exploração — uma taxa sobre a extração, equivalente ao que no Brasil se conhece como royalties. De outro, está o canon, transferência que o governo nacional faz aos governos regionais e municipais a partir da arrecadação do imposto de renda das petroleiras.
Pela lei peruana, os investimentos do canon devem ser aplicados exclusivamente em obras públicas que visem melhorar a qualidade de vida da população. Em alguns municípios, esses recursos representam mais de 40% de seu orçamento total, segundo nossa análise com base em dados do governo peruano.Paralelamente a essa regulamentação, comunidades tradicionais e indígenas por décadas reivindicaram compensações por danos do petróleo aos ecossistemas que habitam. Em 2006, intensos protestos em Loreto levaram à assinatura de um acordo entre governo nacional e líderes locais, que garantiu avanços no enfrentamento dos impactos ambientais deixados em áreas da Amazônia.
Desde então, os governos regionais e locais das áreas onde há exploração de petróleo devem investir 5% do que recebem de canon petrolífero em projetos voltados para as comunidades afetadas. No entanto, a implementação dessa norma foi um “fiasco”, afirma o economista Roger Grández Ríos, diretor do Instituto de Desenvolvimento Socioeconômico do Peru.
A análise de Ríos mostra que, em Loreto, apenas foram investidos 33 milhões de soles (R$ 51 milhões) dos 131 milhões (R$ 205 milhões) que deveriam ter sido destinados às comunidades entre 2007 e 2021. Nesse período, das 117 obras previstas, apenas 13 foram concluídas, somando 4,4 milhões de soles (R$ 6,8 milhões).
Enquanto isso, os danos ambientais se acumularam ao longo dos anos. Um levantamento da Coordenadoria Nacional de Direitos Humanos revelou que, entre 1997 e maio de 2023, o governo peruano registrou 1.460 emergências por vazamentos de óleo. Desses casos, 831 – o equivalente a 57% – ocorreram em território amazônico.
1.460 emergências por vazamentos foram registrados pelo governo peruano entre 1997 e maio de 2023
Paradoxos do petróleo: dependência e má execução
Desde que assumiu o cargo em 2022, o governo da presidente Dina Boluarte tem demonstrado interesse em avançar com a exploração petrolífera na Amazônia apesar da resistência de grupos indígenas e dos graves impactos ambientais deixados em um bioma crucial para o controle do aquecimento do planeta.
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Grande parte da extração no Peru já acontece nessa região. O país abriga 77 blocos destinados à exploração de petróleo, dos quais quase a metade, 42 áreas, estão na região amazônica, segundo dados compilados pelo Instituto Internacional Arayara. Dentre as áreas já concedidas a empresas, que estão em produção ou em exploração, 15 dos 44 blocos estão na Amazônia.
Em fevereiro, a atividade petrolífera no Peru produziu cerca de 1,3 milhão de barris, com uma média de 46 mil barris por dia. Quase metade desse volume vem do bloco 95, operado pela canadense PetroTal, que mantém atividades em Loreto.
Essa é a principal região da Amazônia peruana dedicada à exploração de petróleo e a segunda maior produtora do país, atrás apenas da região costeira de Piura. No primeiro semestre de 2024, a produção de petróleo bruto em Loreto cresceu 16% em relação ao mesmo período do ano anterior. Além disso, o setor respondeu por 97% das exportações do estado, segundo dados do Ministério de Comércio Exterior e Turismo.
No entanto, o interesse do governo nacional no setor ocorre em um momento de queda no número de contratos com petroleiras. Dos 82 acordos vigentes em 2011, apenas 31 permaneciam ativos em 2023. Nesse ano, houve apenas um contrato firmado, segundo um relatório recente do Instituto para a Governança dos Recursos Naturais (NRGI, na sigla em inglês).
Em sua publicação, o NRGI conclui que a queda em contratos vigente se deve a uma série de obstáculos econômicos, como a estagnação dos investimentos, os altos custos de extração, a perspectiva global de queda nos preços do petróleo, além de prejuízos causados por danos ambientais e passivos gerados por vazamentos.
Embora isso possa ser uma boa notícia para o meio ambiente, também é verdade que o declínio da atividade representaria um golpe no orçamento de muitos municípios. Cinco blocos de petróleo têm operações ativas na Amazônia peruana, e esses municípios dependem significativamente das regalías e do canon.
No caso de Mazán, essa dependência ficou ainda maior: o canon representava 50% do orçamento municipal em 2024 e passou de 60% este ano, segundo análise do projeto com base em dados oficiais. Ainda assim, depois de cerca de 20 anos recebendo esses recursos, não há sinais de melhorias nos indicadores sociais do município. Tampouco houve avanços em outras cidades da região de Loreto, segundo a análise.
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Essa realidade ficou palpável durante nossa visita à cidade. O que antes era uma floresta, hoje existe um lixão improvisado que recebe tudo o que é descartado em Mazán. Galinhas ciscam entre os restos de comida decomposta e outros resíduos orgânicos, que emitem um cheiro bastante desagradável.