Estudo da comunicação sonora animal, a bioacústica, mostra que o ruído das cidades força pássaros a mudar frequência e horário de vocalização para garantir comunicação e aprendizado
O canto das aves, frequentemente associado a uma sinfonia natural, é muito mais do que mero encantamento. Ele representa a comunicação vital das espécies e é um objeto central de estudo na ciência conhecida como bioacústica. Essa área investiga como os animais utilizam o som para interagir com o ambiente, e as descobertas recentes demonstram a incrível capacidade de adaptação das aves frente à crescente poluição sonora das cidades.
A bioacústica permite aos cientistas investigar padrões e variações de sons, descrever cantos e, crucialmente, inferir como as aves estão se ajustando a um mundo em constante mudança, especialmente em grandes centros urbanos.
O segredo do canto: a siringe e seus limites
A produção sonora das aves acontece por meio de um órgão exclusivo, chamado siringe. Localizada próxima à traqueia e com formato de “Y” invertido, a siringe é composta por músculos que controlam o fluxo de ar e permitem a emissão de sons complexos e melódicos.
Cada espécie possui uma siringe com características próprias, o que define sua capacidade sonora. É por isso que, mesmo espécies imitadoras, como o sabiá-da-praia, não conseguem reproduzir um som de forma idêntica ao original. O mesmo princípio se aplica a aves que imitam a fala humana, como os papagaios: a siringe impõe um limite acústico à reprodução.
No entanto, é importante notar que nem todas as aves vocalizam. Espécies como urubus, emas e avestruzes não possuem a siringe, e por isso, emitem apenas bufos simples, resultado da passagem de ar pela traqueia, em vez de cantos complexos.
Mascaramento acústico: o desafio urbano
A urbanização e o ruído intenso gerado pelo tráfego, máquinas e atividades industriais representam uma ameaça significativa à comunicação das aves. Esse problema é conhecido como mascaramento acústico.
O ruído urbano é predominantemente de baixa frequência e alta intensidade, coincidindo perigosamente com a faixa de frequência dos cantos de muitas aves. O som da cidade, por ser muito mais intenso, acaba se sobrepondo ao canto, impedindo que as aves se escutem e, consequentemente, se comuniquem para fins de acasalamento, defesa de território ou alerta. A exposição humana a longo prazo a esse ruído também pode causar síndromes hipertensivas e distúrbios do sono.
Estratégias de adaptação: plasticidade vocal
Diante da pressão sonora, as aves demonstram uma notável capacidade de adaptação para driblar o ruído:
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Mudança de horário: Em centros urbanos como São Paulo, o sabiá (conhecido cantor das cidades) adota a estratégia de começar a cantar muito mais cedo, por volta das 4h da manhã. Ao iniciar a vocalização antes do pico de ruído urbano, a ave consegue garantir que seu canto seja ouvido.
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Plasticidade Vocal (Mudança de Frequência): Outra adaptação observada é a plasticidade vocal, onde as aves modulam o canto para aumentar a frequência. Ao cantar em notas mais altas, o som da ave é emitido acima da faixa de ruído urbano, evitando a sobreposição acústica e garantindo a transmissão da mensagem.
Aprendizagem, ruído e os dialetos regionais
A vocalização nas aves também está ligada ao processo de aprendizagem, que é o que divide os pássaros em dois grandes grupos:
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Suboscines (Canto Inato): Como o bem-te-vi, estas aves têm o canto codificado geneticamente. O filhote saberá cantar mesmo se isolado de adultos. Seus cantos são geralmente mais simples.
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Oscines (Canto Aprendido): Como o curió, estas aves precisam de um tutor (um macho adulto da espécie) para aprender o canto durante a infância, em um processo que exige a audição e o ajuste vocal constante. Seus cantos são mais complexos, com grande variação.
O ruído urbano pode afetar gravemente os oscines, pois interfere no feedback auditivo. O jovem precisa ouvir o tutor e a si mesmo para ajustar suas vocalizações. O ruído, ao mascarar o som, pode impedir os ajustes necessários para que o filhote desenvolva o canto típico de sua espécie.
Além disso, cada ambiente possui uma paisagem acústica única, composta por ruídos urbanos, cantos de outras espécies, e sons naturais. Jovens oscines que crescem em Salvador, por exemplo, absorvem sons diferentes daqueles que crescem em Belo Horizonte. Essa exposição a paisagens acústicas distintas leva a um fenômeno fascinante: as variações regionais ou dialetos. Assim como os humanos, as aves desenvolvem “sotaques” diferentes de acordo com a região em que aprendem a cantar.
A bioacústica continua a ser uma ferramenta essencial para a conservação, ajudando a monitorar a saúde das populações e a compreender a resiliência da vida selvagem em meio à pressão crescente do desenvolvimento humano.
Com informações: ECO.