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Profissão, herdeiro: O que é a grande transferência de riqueza, fenômeno que ‘fabrica’ jovens bilionários pelo mundo
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Fato novo![Profissão, herdeiro: O que é a grande transferência de riqueza, fenômeno que 'fabrica' jovens bilionários pelo mundo](https://fatonovo.net/wp-content/uploads/2024/04/Herdeiro-da-REdbull-1.jpg)
O fenômeno dos herdeiros, jovens e bilionários
Na tradicional lista dos mais ricos do planeta divulgada no início do mês pela revista Forbes, uma tendência chama a atenção: há muitos rostos jovens e desconhecidos figurando entre as maiores fortunas.
Na tradicional lista dos mais ricos do planeta divulgada no início do mês pela revista Forbes, uma tendência chama a atenção: há muitos rostos jovens e desconhecidos figurando entre as maiores fortunas.
Muitos deles sequer começaram a trabalhar ou escolheram suas carreiras, mas tiveram uma grande ajuda para estar ali: pela primeira vez desde 2009, todos os bilionários com menos de 30 anos listados no ranking da Forbes são herdeiros. Dos 25 bilionários com 33 anos de idade ou menos que figuram no ranking, apenas sete construíram seus próprios impérios.
Para a Forbes, a presença massiva de jovens herdeiros é sinal de que está em curso um fenômeno há tempo preconizado no universo das finanças globais: a “grande transferência de riqueza”, período em que grande parte de todo o patrimônio dos ricos do mundo mudará de mãos para as próximas gerações.
A estimativa é de que, somente até o fim de 2029, mais de US$ 8,8 trilhões sejam transferidos dos bilionários para seus jovens sucessores.
“E não estamos falando só de dinheiro, mas também das empresas”, explica o advogado Yuri Freitas, responsável pelo time de planejamento patrimonial para o Brasil do banco suíço UBS.
Ele comanda um grupo de especialistas que fica à disposição dos clientes donos de fortunas com uma função: ajudá-los a planejar o que fazer com seu patrimônio depois que eles morrerem.
Apesar da formação financeira e jurídica de Freitas, o trabalho dele e de sua equipe envolve mais habilidades do que cuidar dos números e conhecer leis. Vai desde conversar com a família sobre o uso dos recursos por todos os parentes e agregados (quem pode usar o jatinho? quem pode emprestar o iate?) a sugerir regras para a contratação de familiares como funcionários e calcular o risco que novos casamentos podem representar para o patrimônio dos herdeiros.
A função inclui também mapear os objetivos de cada cliente para o seu patrimônio após a morte: como dividir empresas, obras de arte, embarcações, aeronaves e imóveis, entre outros.
A equipe de planejamento do patrimônio também ajuda a criar protocolos para questões delicadas que misturam laços familiares e dinheiro. O planejamento abrange aspectos íntimos da vida familiar, como o regime de bens se o cliente é casado, se tem filhos, se os filhos são casados, se moram no Brasil ou fora, por exemplo.
Para quem não é herdeiro de nenhuma grande fortuna, uma boa referência a esse universo é a série Succession, da HBO, que aborda o drama de uma família de bilionários.
“Por mais caricata que a série seja, as famílias têm conflitos que se desenvolvem numa dinâmica de comportamento parecida”, conta Freitas.
A BBC News Brasil reuniu especialistas, artigos e exemplos práticos para explicar o que é a grande transferência de riqueza e qual o debate em torno dos impactos negativos que esse nível de concentração de renda pode acarretar. Uma das etapas de um trabalho como o de Freitas é o de construir com a família dona da fortuna um protocolo familiar, de preferência antes do doador transmitir a herança aos filhos.
“É quando o patriarca está bem e ativo que é importante tomar essas decisões para enfrentar conflitos lá na frente”, diz o executivo da UBS.
Pesquisa realizada pela consultoria americana The Williams Group estima que 70% das transferências de riqueza nos Estados Unidos falham, e que 60% dessas falhas resultam em falta de confiança e comunicação entre os membros da família rica.
“A família precisa ter regras de como lidar com o patrimônio muito bem estabelecidas. E não estou falando só dos instrumentos jurídicos, como testamento, o contrato social da empresa, o acordo de acionistas”, diz Freitas.
“Estou falando do aspecto moral, por exemplo: como eu vou contratar um primo ou um sobrinho? Que requisitos ele ou ela tem que ter, que escolaridade? Quem pode usar o jatinho da família?”, segue o especialista.
A criação do protocolo familiar para o planejamento da herança pode envolver a criação de comitês familiares para apresentar os investimentos e até de psicólogos e outros profissionais para mediar as conversas.
“É muito comum que a discussão sobre a qualificação do executivo a ser contratado descambe para: ‘Ah, você contrata o seu filho e agora quer demitir o meu’. A gente ajuda o cliente a construir esse protocolo”, diz o executivo.
Em 15 anos de experiência na área, a percepção de Freitas coincide com o diagnóstico da revista Forbes: a grande transferência de fortuna global já está em curso de maneira acelerada, e os bilionários do Brasil e do mundo estão começando cada vez mais cedo a repassar seus patrimônios para a próxima geração.
De tempos em tempos, cada geração de adultos herda das gerações anteriores o patrimônio acumulado por determinada família.
Como no exemplo brasileiro abordado pela Forbes: a Weg, multinacional que exporta para 135 países e é uma das maiores fabricantes de motores elétricos do mundo, foi cofundada por Werner Ricardo Voigt, bilionário que morreu em 2016. Hoje, são bilionárias também as netas de Werner, Lívia Voigt, 19 anos, e sua irmã Dora Voigt, 26, que não participam ativamente do dia a dia da empresa.
Mas a riqueza fundada por Werner não enriqueceu apenas as duas netas: além de Lívia e Dora, outros 28 empresários têm a Weg como origem de sua fortuna. De acordo com a Forbes, os descendentes dos fundadores da Weg têm, juntos, um patrimônio de R$ 85,53 bilhões.
Movimentos como o da família Voigt estão acontecendo e devem se acelerar, de acordo com as projeções dos institutos que acompanham as grandes fortunas.
Os números divergem, mas apontam para o mesmo cenário: nas próximas duas décadas, trilhões de dólares devem passar das mãos de abastados baby boomers (nascidos em 1964 ou antes, nas duas décadas após o fim da Segunda Guerra Mundial) para as afortunadas próximas gerações de herdeiros millennials (nascidos entre 1981 e 1996) e geração Z (entre 1997 e 2013).
A empresa de pesquisa de mercado Cerulli Associates estima que US$ 84 trilhões mudarão de mãos até 2045 – sendo US$ 72,6 trilhões transferidos para herdeiros e US$ 11,9 trilhões para filantropia. Relatório do banco UBS sobre ambições bilionárias em 2023 aponta que, pela primeira vez na história do estudo, novos bilionários adquiriram mais riqueza por meio de heranças do que pelo empreendedorismo. Em um ano, um total de US$ 150 bilhões foram obtidos por 53 herdeiros, enquanto 84 bilionários acumularam US$ 140,7 bilhões por meio do empreendedorismo.
O UBS também estima que, nos próximos 20 a 30 anos, mais de mil bilionários de hoje transferirão mais de US$ 5,2 trilhões a seus herdeiros.
“Como calculamos esta estimativa? Apenas somando a riqueza dos 1023 bilionários que têm 70 anos ou mais hoje”, diz o relatório.
Nos Estados Unidos, a estimativa é que a geração dos baby boomers retenha atualmente US$ 95,9 trilhões dos US$ 147,1 trilhões da riqueza das famílias dos EUA, segundo o Federal Reserve, o banco central dos Estados Unidos.
E por que essa geração que está envelhecendo tem tanto dinheiro para dar aos seus sortudos sucessores?
“A riqueza excepcional resultante do boom da atividade empresarial desde os anos 90 estabeleceu uma base para gerações futuras de famílias bilionárias”, segue o texto.
“Nunca antes tanto dinheiro – em imóveis, terra, ações e espécie – mudará tão repentinamente de uma geração para outra, e nunca antes a próxima geração teve sentimentos tão diferentes sobre o futuro do planeta e o capitalismo em comparação a seus precursores”, explica em artigo publicado no ano passado o banqueiro e filantropo sul-africano Ken Costa, autor do livro The 100 Trillion Dollar Wealth Transfer e uma das vozes mais contundentes a respeito do fenômeno.
A principal tese de Costa, ele mesmo um bilionário boomer, é que os jovens, excluídos da riqueza desfrutada pelas gerações mais velhas durante tanto tempo, são desgostosos em relação ao capitalismo atual. Mais do que isso, culpam com razão os boomers por destruírem o planeta numa corrida precipitada por riquezas a curto prazo. Os boomers, culpados, pioraram as coisas por serem arrogantes e resistentes à mudança, na visão de Costa.
“Os Zennials [nome que ele criou para se referir aos jovens millenials, nascidos entre 1981 e 1996 mais os Gen Z, entre 1997 e 2013] herdarão recursos de capital, poder e influência, e a tecnologia será a ferramenta que utilizarão para implementar a sua filosofia”, prevê.
“Não há como escapar deste evento sísmico e, de fato, a transferência já começou e está acelerando rapidamente. E este evento não acontecerá isoladamente. Também criará um efeito cascata na economia, na tecnologia e na cultura. O que sairá dessas mudanças depende da nova geração”.
“O que espero é que eles alcancem um futuro financeiro estável e próspero, e acredito que é essencial que nós, boomers, ajudemos a concretizar isso”, afirma Costa.
Há diversos motivos que levam os patriarcas e donos das grandes fortunas a apressarem cada vez mais a transferência de patrimônio para as novas gerações, e a principal delas é o medo de pagar mais impostos.
Nos Estados Unidos, a doação de heranças em vida é isenta de impostos até um limite de US$ 12 milhões; sobre o que extrapolar esse limite, as alíquotas chegam a 40% sobre o valor doado.
“É quase metade do patrimônio que acaba sendo pago em impostos. Então, o estudo de estruturas e estratégias para suavizar essa transmissão sempre foi uma preocupação que habitou o imaginário desses executivos”, diz Freitas.
No Brasil, a pressão dos impostos sobre as grandes fortunas e heranças sempre foi mais branda que a da maioria dos países e exigiu menos planejamento dos bilionários – com muitas opções para que os muito ricos acumulassem rendimentos ao longo da vida com pouca tributação. No ano passado, o governo agiu para acabar com a vantagem concedida em algumas aplicações onde era possível adiar o pagamento de impostos que são devidos quando se aplica o dinheiro.
“Até o final de 2023, era muito comum que o cliente tivesse um fundo multimercado exclusivo dele e esse fundo só pagava imposto no momento de uma amortização, de um resgate. Então você tinha ali uma estrutura que ficava 10, 15 anos, só rentabilizando sem pagar imposto”, diz o executivo do UBS.
A reforma tributária de 2023 mudou um pouco o cenário na tributação de heranças, principalmente ao prever potencial aumento da alíquota do Imposto sobre Transmissão Causa Mortis e Doação (ITCMD), conhecido como o “imposto das heranças”.
Atualmente, o ITCMD é estadual e possui alíquotas que variam entre 4% e 8%. A cobrança é diferente em cada Estado brasileiro. Em São Paulo, a alíquota é de 4%. Em Minas Gerais, de 5%. Já o Rio de Janeiro prevê seis alíquotas progressivas de 4% a 8% à medida que a herança aumenta.
A reforma estabelece que o imposto será obrigatoriamente progressivo, – ou seja, quanto maior o valor da herança ou doação, maior será a alíquota aplicada.
“O Estado de São Paulo pratica uma alíquota de 4% historicamente, e a expectativa é que em algum momento a Assembleia Legislativa se mova para aumentar essa alíquota. Então, muita gente vê muitas transmissões de patrimônio acontecendo ou se acelerando por conta disso”, explica Freitas.
Em seu segmento de planejamento patrimonial do UBS, nunca houve tanta demanda de clientes brasileiros por informações e atendimento a respeito das novas regras de herança, doações e temas relacionados como no ano passado, por causa da reforma tributária, diz Freitas. “Foi o ano mais desafiador da minha carreira. Quando você tem uma reforma que muda toda a regra, e realmente mudou, o baby boomer precisa entender as novas regras, que são complexas, e rever as decisões. Tudo isso vai pressionando ele [a acelerar os planos]”, diz.
“O assunto do ano passado foi reforma tributária, e o deste ano são os ajustes que se tem que fazer para por conta da reforma tributária”, aponta Freitas.
Essa nova leva de jovens herdeiros bilionários prevista para as próximas décadas ocorre em um momento da história em que a concentração de renda nas mãos de poucas famílias piora a vida da maioria das pessoas do mundo.
O relatório Desigualdade S/A, divulgado no início do ano pela Oxfam, aponta que a riqueza dos cinco maiores bilionários do mundo dobrou desde 2020, enquanto a de 60% da população global – cerca de 5 bilhões de pessoas – diminuiu nesse mesmo período.
Enquanto sete em cada dez das maiores empresas do mundo têm bilionários como CEOs ou principais acionistas, apenas 0,4% das mais de 1.600 maiores e mais influentes empresas do mundo se comprometeram publicamente com o pagamento de salários dignos a seus trabalhadores.
“A década de 2020, que começou com a covid-19 e depois assistiu à escalada de conflitos, à aceleração da crise climática e ao aumento do custo de vida, parece estar se transformando em uma década de divisão”, diz o documento.
“A pobreza nos países de renda mais baixa é ainda maior do que era em 2019. Em todo o mundo, os preços estão ultrapassando os salários, e centenas de milhões de pessoas têm dificuldades”, alerta o texto.
Daniel Duque, pesquisador da área de economia aplicada do FGV Ibre (Instituto Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), explica que tal esforço dos super-ricos em repassar seus bens para as próximas gerações pode ser uma reação às recentes iniciativas de diversos países de debater e implementar modelos mais progressivos de tributação – após décadas de alíquotas que foram generosas com os bilionários.
Movimento que cresceu fomentado principalmente pela visibilidade dada ao trabalho do economista francês Thomas Piketty, que defende reparos ao sistema capitalista capazes de interromper esse processo de concentração de riqueza.
“Está havendo um movimento em diversos países de haver uma tributação maior sobre grandes fortunas, o que gera uma pressão sobre os super-ricos de passar logo para a próxima geração”, diz Duque.
Outro debate que pode pressionar esse público é o que ocorre no G20 em torno da criação de um tributo global sobre grandes fortunas, proposta apresentada ao grupo em fevereiro pelo ministro da Fazenda, Fernando Haddad, durante encontro em São Paulo.
“Um tributo como esse tornaria muito mais difícil para os super-ricos gerarem essa herança sem tributação. Porque até então, quando se cobrava um imposto, eles migravam o dinheiro para outro lugar”, aponta o pesquisador.
Tanta concentração de renda traz riscos econômicos e políticos para o planeta, diz o Duque, bem como a assimetria de oportunidades, bastante desfavorável para quem tem menos dinheiro. “Um dos principais riscos é como lidar com o poder tão concentrado nas mãos de tão poucos. Antigamente, a capacidade de os mais ricos influenciarem a política era mais limitada, com menos capacidade de ação nos meandros do poder. Com uma concentração alta, isso começa a mudar e se vê indivíduos que conseguem mudar rumos”, diz ele.
Como em todo debate geracional, profissionais de todas as áreas têm se debruçado para tentar prever o comportamento desses jovens herdeiros e as mudanças que eles causarão no mundo dos negócios.
Principalmente os bancos, que correm o risco de perder os clientes cujo patrimônio tão vultoso eles ajudaram a construir e compartilharam por décadas.
O que se sabe é que os bilionários da nova geração são mais conectados socialmente, mais digitais e, pelo menos no discurso, se importam mais do que os pais sobre o impacto positivo que os seus investimentos terão no planeta, tanto no clima quanto socialmente.
Relatório da consultoria EY estima que investidores millenials têm o dobro da disposição em investir em empresas ou fundos que busquem transformações sociais e ambientais.
Além disso, 17% dos millenials dizem querer investir em companhias que adotam práticas de ESG de alta qualidade, comparados a 9% entre investidores não-millenials. No UBS, a equipe de wealth management realiza há anos uma série de eventos e programas voltada a atender aos investidores next gen, como são chamados os herdeiros de fortunas.
No Brasil, o banco criou em 2019 um encontro de troca de experiências exclusivamente voltado para herdeiros. “Ali a gente trouxe alguns herdeiros falando para outros herdeiros sobre temas como inovação no negócio familiar, governança familiar, family office“, afirma Freitas.
Nota-se diferenças comportamentais: se os baby boomers apreciam o sigilo e a privacidade de uma relação formal e de confiança com o consultor do banco, os jovens gostam de mais interação com seus pares.
“Ele vê o banco como um lugar que pode proporcionar para ele contato com outros empreendedores e pode abrir portas com pessoas com outros clientes”, diz Freitas.
No programa para sucessores seletos de patrimônio mais elevado, há até uma comunidade global criada pelo banco especialmente para a convivência entre herdeiros do mundo todo, onde eles compartilham dicas, eventos e relações para além das mediadas pelo banco.
Dá para esperar que os bilionários gerarão mudanças positivas para o mundo – que sofre, entre outras questões, com a enorme concentração de renda na mão de poucas famílias? O relatório do UBS pontua que, embora existam vários casos bem divulgados de empresários bilionários que prometem doar grande parte de suas fortunas à filantropia, é menos conhecido o fato de que entre herdeiros essa intenção seja mais reticente.
“Embora mais do que dois terços (68%) dos bilionários da primeira geração tenham declarado que seguir seus objetivos filantrópicos e gerar impacto no mundo tenha sido o objetivo principal de seu legado, menos de um terço (32%) das gerações herdeiras expressou a mesma intenção”, diz o estudo.
Na experiência do UBS, as gerações sucessoras são muitas vezes relutantes em doar dinheiro que não ganharam e, em alguns casos, elas podem simplesmente continuar investindo nas eventuais fundações existentes na família.
“No entanto, há uma tendência para investir ou gerenciar negócios de maneira que abordem questões ambientais e sociais, tanto para fins comerciais como fins altruístas”, aponta o relatório.
A pesquisa do banco ouviu alguns desses herdeiros.
“Por mais que meu pai trabalhasse em petróleo, gás e mineração, estou tentando mudar todo o negócio para assuntos relacionados à tecnologia, áreas que têm menos impacto no meio ambiente”, explicou um bilionário de segunda geração ao estudo.
“Mas eu não vou vender todos esses negócios em um dia. É uma jornada que comecei há vários anos, quando assumi negócios da família.”
Outro fator que apressa o planejamento da sucessão entre bilionários, para Freitas, é a pressão crescente dos mercados nas últimas décadas por mais transparência, regulação e compliance (conjunto de práticas para garantir o cumprimento de regras legais e éticas definidas pelos Estados ou pelas próprias empresas). Segundo o executivo do UBS, no setor bancário, a regulação de compliance nos últimos 30 anos passou a cobrar muito mais transparência, com contatos frequentes por e-mail. “O baby boomer que já construiu a sua fortuna gosta do papel, ele gosta da presença física”, diz ele.
No caso dos baby boomers brasileiros, o apego ao controle de todas as decisões financeiras e operacionais relacionadas ao patrimônio é ainda mais marcante, diz Freitas.
“Mesmo quando faz sentido do ponto de vista tributário um projeto de passagem de bastão, por exemplo, o projeto não acontece se você não tiver o patriarca engajado”, afirma, citando um exemplo fictício.
“Às vezes, ele até diz que está engajado, mas quando chega na hora de falar ‘você deixa de ser executivo da empresa e vai passar para o conselho de administração’, ele topa, mas está ali no chão de fábrica todo dia, vendo tudo de perto”.
Como imaginar que, tão habituados ao controle de todo seu patrimônio, tais bilionários baby boomers estejam cedendo tão rapidamente o poder às próximas gerações, como sugere a grande quantidade de jovens listados pela Forbes?
Há muitos recursos para manter o poder mesmo após a doação dos ativos, explica Freitas. Um deles é a reserva de usufruto, que prevê que o dono fundador mantenha o poder político sobre aquele patrimônio. “No exemplo de uma empresa: eu doei as ações, já recolhi o imposto sobre herança, mas eu reservei o usufruto político e econômico: o que significa que eu ainda mando e ainda posso receber o rendimento”, explica.
Existe também a cláusula de incomunicabilidade da herança, que é prevista no Código Civil para possibilitar que bens herdados ou doados não sejam transmitidos ao cônjuge – “para que o ativo não se contamine com patrimônio do agregado, da nora, do genro”, diz Freitas.
O que significa que, embora abastadíssimos, com um futuro promissor e cheio de regalias, estar na lista da Forbes não significa que a nova geração já esteja integralmente no comando.
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‘Nosso futuro está em risco’, diz Bela Gil em debate sobre agrotóxicos no Armazém do Campo
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26 de julho de 2024Por
Fato novo![](https://fatonovo.net/wp-content/uploads/2024/07/Nosso-futuro-esta-em-risco-diz-Bela-Gil-em-debate-sobre-agrotoxicos-no-Armazem-do-Campo.webp)
Em mesa com pesquisadora Larissa Bombardi, apresentadora defendeu que combate a veneno nas lavouras deve entrar na pauta
Dos dez agrotóxicos mais vendidos no Brasil, cinco são proibidos na União Europeia. Esse e outros dados foram apresentados pela pesquisadora Larissa Bombardi no lançamento do livro Agrotóxicos e colonialismo químico (Editora Elefante, 2023), realizado nesta quarta-feira (24) no Armazém do Campo, em São Paulo.
“Como pode a gente valer menos? Como pode que sejamos sub-humanos? Porque é isso que esses dados estão mostrando”, questionou a pesquisadora.
O evento teve a presença da apresentadora Bela Gil e do comunicador popular Guilherme Terreri, também conhecido como Rita von Hunty, que dividiram a mesa com Larissa. A conversa teve como ponto de partida a ideia de que os agrotóxicos não são um assunto de interesse somente dos agricultores, mas de toda a sociedade.
“A gente está colocando em risco a nossa vida, o nosso futuro”, frisou Bela Gil. “A gente sabe que o nosso sistema alimentar influencia muito a questão climática”.
No livro, Larissa apresenta dados e mapas que permitem uma compreensão sociológica dos impactos dos agrotóxicos. Enquanto os efeitos desses venenos prejudicam a saúde da população, o sistema que os utiliza – a produção de commodities – causa danos ao meio ambiente e ao modo de vida dos povos do campo.
Conforme a pesquisa, as principais vítimas são as mulheres, crianças, indígenas e camponeses que vivem em áreas próximas às áreas de monocultura. “A noção de que esse é um debate de um setor econômico, de um setor produtivo, não é”, ressaltou Terreri. “Esse é um debate sobre a saúde do nosso povo e do nosso território”, ressalta o educador.
A cada ano, um milhão de pessoas em todo o mundo são intoxicadas de forma involuntária por meio do contato com agrotóxicos. No Brasil, entre 2010 e 2019, o Ministério da Saúde registrou a intoxicação de 56.870 pessoas por essas substâncias, segundo a ONG WWF. Apesar disso, em 2022, o senador Blairo Maggi protocolou em 2022 um projeto de lei que propunha, entre outras medidas, a mudança do nome “agrotóxico” para “pesticidas”.
“É uma disputa também não só do uso, mas da ideologia, de mudar o pensamento do consumidor para passar a ideia de que essas coisas que fazem mal, fazem bem”, avalia o designer Gabriel Bispo, que assistiu à conversa. “É uma coisa muito mais profunda do que a gente imagina”.
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Fato Novo com informações e imagens: Brasil de Fato
Brasil
Subsídios e benefícios fiscais custam ao Brasil mais que o dobro do que BPC e Bolsa Família
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12 horas atrásno
26 de julho de 2024Por
Fato novo![](https://fatonovo.net/wp-content/uploads/2024/07/tebet-bom-bia_mcamgo_abr_18072024-4-e1721338179149.webp)
Valor que governo deixar de arrecadar em incentivos ultrapassa R$ 615 bilhões; Bolsa Família e BCP custam R$ 268 bilhões
O gasto do governo federal com benefícios fiscais e subsídios em taxas de juros deve superar o dobro do custo anual de todas parcelas do Bolsa Família e do Benefício de Prestação Continuada (BPC) pagas a mais de 25 milhões de pessoas neste ano. Juntos, esses programas sociais custarão R$ 268 bilhões à União, segundo o Orçamento. O chamado “gasto tributário” deve superar os R$ 615 bilhões – 129% a mais.
O valor desse gasto tributário foi revelado pela ministra do Planejamento, Simone Tebet (MDB). Ele considera o custo do governo com renúncias fiscais, que ultrapassam os R$ 520 bilhões, mais o gasto com subsídios financeiros e creditícios. Esses subsídios são descontos em taxas de juros de empréstimos usando recursos públicos.
Tebet falou sobre esse gasto ao ser questionada sobre o aumento do gasto do governo com BPCs neste ano, informado pelo governo na segunda-feira (22). Combinado com regras do novo arcabouço fiscal, o crescimento forçou o Executivo a bloquear cerca de R$ 11,2 bilhões em gastos não obrigatórios previstos para este ano.
A ministra falou que o governo está comprometido com o controle de gastos para o cumprimento de suas metas fiscais. Ela ressaltou que o problema das contas públicas do país não está ligado aos programas sociais, mas sim aos incentivos fiscais.
“O problema dos gastos no Brasil não é o pobre no orçamento. São os privilégios dos ricos que precisam ser checados ponto a ponto nos gastos tributários”, afirmou ela. “O problema do orçamento brasileiro não está no Bolsa Família, nos programas sociais bem aplicados.”
Arcabouço
O arcabouço fiscal estabelece um limite de gasto baseado no valor da arrecadação do governo. Quanto ele arrecada, mais pode gastar.
Neste ano, o limite é de R$ 2,105 trilhões, baseado na arrecadação de 2023. Se a arrecadação tivesse sido maior, a despesa poderia crescer mais.
Hoje, por conta do aumento dos gastos com BPC, a despesa está prevista em R$ 2,116 trilhões. O valor supera o limite e forçou o corte de gastos.
Mesmo com o corte, o governo pretende gastar R$ 28,8 bilhões a mais do que o que arrecadar em 2024.
Arrecadação
O governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) já enviou uma série de medidas para aumentar a arrecadação da União ao Congresso Nacional. Elas visam, principalmente, reduzir benefícios tributários dados à fatia mais rica da população.
Por iniciativa do governo, a Receita Federal passou a cobrar imposto de renda sobre rendimentos de fundos offshores, para os quais ricos enviam recursos para fora do país, e também sobre fundos exclusivos de super-ricos, que têm mais de R$ 10 milhões de saldo.
Ainda assim, os gastos tributários seguem crescendo, segundo dados da Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil (Unafisco Nacional). A entidade considera em sua conta, além dos benefícios previstos em lei, as omissões da Receita na taxação das grandes fortunas e dos chamados lucros distribuídos em forma de dividendos.
Na conta da Unafisco Nacional, o total dos gastos tributários para o ano de 2024 é de R$ 789,6 bilhões – 46,9% mais do que em 2023, quando chegou a R$ 537,5 bilhões.
Privilégios
Parte desses gastos, aliás, são considerados pela Unafisco privilégios tributários. São gastos com setores ou grupos específicos sem contrapartida adequada, notória ou comprovada para o desenvolvimento econômico sustentável ou redução das desigualdades.
Os dois principais privilégios são justamente a omissão para a cobrança do imposto sobre fortunas e sobre dividendos. Eles acarretam um gasto tributário anual de R$ 160 bilhões e R$ 76 bilhões, respectivamente.
O Bolsa Família, pago a cerca de 20,8 milhões de pessoas, vai custar R$ 168 bilhões ao governo em 2024. Já o BPC, pago a outras 5,9 milhões de pessoas sem fonte de renda, custa outros R$ 100 bilhões.
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Fato Novo com informações e imagens: Brasil de Fato
Entrevista
‘Democracia vive um tempo de crise’, diz dom Jaime Spengler, presidente da CNBB
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13 horas atrásno
26 de julho de 2024Por
Fato novo![](https://fatonovo.net/wp-content/uploads/2024/07/Jaime-Spengler.jpeg)
Em entrevista ao Brasil de Fato, religioso admite que celibato para padres poderia ser “revisado” e “revogado”
Na presidência da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) desde maio de 2023, representante da igreja Católica no Brasil, Dom Jaime Spengler tem feito um mandato discreto, no espírito de sua eleição considerada, à época, uma alternativa à polarização entre direita e esquerda que ultrapassou o processo eleitoral de 2022 e chegou aos corredores da organização.
Em entrevista ao Brasil de Fato, Spengler lamentou o momento político do país e afirmou que “a democracia vive um tempo de crise. Aquilo que limita a participação de muitos no necessário debate político, salta aos olhos. Junto com a crise da democracia, é latente uma desafiadora crise ética”.
Por e-mail, o presidente da CNBB falou também sobre o movimento de padres que pedem a liberação do casamento e o fim do celibato para os clérigos. “Este é um tema que sempre retorna. O celibato é uma norma disciplinar da Igreja de tradição latina, introduzida a mais ou menos mil anos. Neste horizonte poderia ser revisada, revogada”, explicou Spengler.
Também arcebispo de Porto Alegre (RS), o religioso falou ainda sobre as enchentes que tomaram conta da capital gaúcha, em maio deste ano, após fortes chuvas na região.
Sgundo ele, a Arquidiocese de Porto Alegre foi atingida pelas enchentes. O religioso afirma que as inundações “foram sim fruto de fatores climáticos que necessitam urgentemente de atenção. Foram também expressão da negligência da própria sociedade.”
Dom Jaime Spengler nasceu em Gaspar (SC), no dia 6 de setembro de 1960. Em 1982 entrou para a Ordem dos Frades Menores em Rodeio (SC). O presidente eleito da CNBB estudou Filosofia no Instituto Filosófico São Boaventura, no Paraná, e Teologia no Instituto Teológico Franciscano, no Rio de Janeiro.
Em novembro de 2010, foi nomeado pelo papa Bento XVI como bispo titular de Patara. No ano seguinte, em fevereiro de 2011, o bispo foi ordenado na paróquia São Pedro Apóstolo, em Gaspar. Em 18 de setembro de 2013, o papa Francisco nomeou dom Jaime Spengler como novo arcebispo de Porto Alegre.
Confira a entrevista na íntegra:
Brasil de Fato: Gostaria de saber como o senhor tem visto a polarização política em nosso país. A eleição do senhor, em abril de 2023, também foi margeada por aspectos que refletiam a atmosfera política do país, com discussões sobre posicionamentos de bispos que estão mais à esquerda ou mais à direita.
Dom Jaime Sprengler: A polarização política tem marcado, sobretudo, a história recente do país, presente tanto no âmbito digital como físico. Isto não é privilégio do Brasil. Pode-se dizer que é o processo no qual a opinião se baseia em pontos de vista que não reconhecem aquilo que creem que seja o ponto de visto do outro. Ela se sustenta em dois grupos de pessoas que discordam, e cada um acreditando que o outro é totalmente culpado pelo que está em debate ou em questão; as posições defendidas por um e outro grupo são consideradas irremediáveis filosófica, política e moralmente. Alimentar a polarização produz obtusidades, fecha espaços de construção social, impede a promoção do necessário diálogo, especialmente quando em questão está o bem comum.
Os bispos são pessoas que fazem parte da sociedade humana, são cidadãos e, consequentemente, se sentem corresponsáveis pelo bem comum. De forma ainda mais característica por acreditarem, testemunharem e anunciarem o Evangelho da Vida. Neste sentido, é inspiradora a expressão de Jesus: “Eu vim para que todos tenham vida e vida em abundância” (Jo 10,10). Por isso, onde a vida é ferida, desrespeitada ou até mesmo ignorada não podemos nos calar. Os bispos são eleitos, em cada tempo da história, para serem colaboradores da Igreja na obra da evangelização marcada por âmbitos característicos. Na história recente do Brasil, a Igreja tem demonstrado empenho decisivo em favor dos direitos humanos, da vida, da democracia, dos povos originários, dos urgentes e necessários cuidados e respeito pela Casa Comum.
Brasil de Fato: O que é democracia para o senhor? Como ela se manifesta e qual seu atual estágio em nosso país?
Recentemente, o Papa Francisco usou uma expressão simples que expressa com clareza e objetividade o que é a democracia: “Democracia é resolver ‘juntos’ os problemas de todos”. Ou, se quisermos, podemos usar outra forma para dizer o que seja democracia: é o ordenamento civil por meio do qual as forças sociais, jurídicas e econômicas cooperam proporcionalmente para a promoção do bem comum, em favor de toda a sociedade, com especial atenção aos mais fragilizados, ou numa outra expressão, aos que estão nas periferias existenciais – e que, na nossa realidade nacional, são uma multidão.
A realidade atual da nação exige coragem e determinação para avançar em maior rapidez e eficiência na construção, aplicação, acompanhamento e avaliação de políticas públicas capazes de integrar o maior número de pessoas no seio da sociedade, a fim de que justiça e paz possam se abraçar.
Brasil de Fato: Recentemente, tivemos a votação no Congresso Nacional de pautas que estão nas Casas Legislativas de grande parte do mundo, o aborto e a liberação da maconha. Parte da resistência ao avanço nessas pautas é feita por religiosos. O senhor acredita que a fé e a crença individual deva pautar a legislação de uma nação?
Nossa sociedade está marcada pelos valores da tradição cristã; são, hoje, muitas as expressões desta tradição. Ora, a fé cristã é expressão de uma experiência de encontro com uma pessoa – Jesus Cristo. Neste sentido, vale recordar a celebre expressão de Bento XVI: “no início do ser cristão, não há uma decisão ética ou uma grande ideia, mas o encontro com um acontecimento, com uma Pessoa que dá à vida um novo horizonte e, desta forma, o rumo decisivo”.
As pautas citadas implicam diretamente na vida de pessoas que se orientam pela fé e crenças. A Igreja como uma instituição reconhecida, com direitos e deveres, tem a responsabilidade de participar dos debates públicos que envolvam temas relacionados à vida em todas as suas dimensões. O parlamento, espaço de debate e de construção de legislação, não pode não estar atento àquilo que a sociedade espera de seus representantes. Infelizmente, há um sentimento difuso de descrédito em relação aos poderes públicos; as razões de tal situação são variadas. A própria democracia vive um tempo de crise. Aquilo que limita a participação de muitos no necessário debate político, salta aos olhos. Junto com a crise da democracia, é latente uma desafiadora crise ética.
Tais pautas não podem ser conduzidas por ideologias ou interesses espúrios. Urge coragem e determinação para promover o necessário debate, levando em consideração valores éticos, avanços científicos e elementos antropológicos da tradição judaico-cristã, quais sustentáculos da nossa cultura.
A ideia do sofrimento, por exemplo, das inúmeras mulheres que sofrem formas distintas de abuso é altamente importante considerar. O argumento sobre o desrespeito pelo corpo da mulher toca um aspecto do convívio social merecedor de especial atenção. Mas é também importante o respeito pelo corpo da criança, que segundo dados da própria ciência é outro em relação ao da mãe. Estes poderiam ser alguns aspectos que tornam o debate em torno do aborto delicado.
No que tange ao projeto, dito, de liberação da maconha há também aspectos delicados. Não faltam estudos que apontam para graves danos cerebrais, neurológico, sobretudo em usuários adolescentes e jovens da referida planta. No passado tive oportunidade de cooperar num centro de recuperação de dependentes químicos. Afirmar o uso recreativo da maconha aponta para um limite delicado. É preciso maior honestidade no debate em torno desta temática. Uma família que possui no seu núcleo um viciado sabe – e sofre – as consequências de tal hábito.
Poder-se-ia, neste contexto, invocar a liberdade. Mas, o que é a liberdade? Não certamente poder realizar o que cada um decide. Tal compreensão leva a caminhos, no mínimo, perigosos. Liberdade é, antes de tudo, libertação contínua da nossa inalienável dignidade: sede de vida e de amor que vence ódio e morte. A liberdade pressupõe discernimento e responsabilidade; são elementos adquiridos quando se busca a honestidade e se reconhece a própria limitação.
Brasil de Fato: Como o senhor vive a experiência das enchentes que tomaram conta do Rio Grande do Sul? Ela chegou até o senhor? Dois meses após as enchentes, há uma análise sobre o que aconteceu?
As fortes chuvas que se abateram o Rio Grande do Sul em fins de abril e durante o mês de maio, produziram muita destruição e morte. O número de municípios, e consequentemente de comunidades, famílias, pessoas atingidas foi enorme. A região metropolitana de Porto Alegre, território da Arquidiocese, foi duramente atingida.
As enchentes foram sim fruto de fatores climáticos que necessitam urgentemente de atenção. Foram também expressão da negligência da própria sociedade. Tais fenômenos sempre aconteceram ao longo do tempo. Entretanto a frequência maior de tais fenômenos chama a atenção de muitos – também em várias cidades do Brasil; e a comunidade científica não se cansa de lançar alertas. Há cidades no Rio Grande do Sul que nos últimos 12 meses, sofreram três enchentes seguidas e devastadoras.
A região metropolitana conta com um complexo sistema de proteção contra cheias, cuja construção teve seu início na década de 70. Todavia o projeto não foi totalmente concluído, além de carecer de manutenção ao longo dos anos. O número de flagelados foi enorme. Empresas, fábricas, comércios grandes e pequenos situados nas regiões mais baixas foram fortemente atingidas.
A tragédia fez com que viesse o melhor de uma multidão – no Brasil e no exterior. Não recordo de haver testemunhado um mutirão de solidariedade tão expressivo na história recente do Brasil; sinal de que entre nós existem pessoas boas, que testemunham compaixão e solidariedade. Digno de destaque o número de voluntários provenientes de distintas regiões de nosso Brasil, dispostos a colaborar no que fosse necessário: atendimento primário aos flagelados, atendimento à saúde, preparo de alimentação, seleção e distribuição dos donativos que chegaram, colaboração no árduo e delicado trabalho de limpeza. O empenho das Forças Armadas, da Defesa Civil, Bombeiros, a dedicação de tantos jovens ficará certamente como uma característica marcante na história da região. Vimos a fraternidade personalizar-se, pois como disse o Papa Francisco “perante o sofrimento, onde se mede o verdadeiro desenvolvimento dos nossos povos, descobrimos e experimentamos a oração sacerdotal de Jesus: ‘Que todos sejam um só (Jó 17, 21)’”.
Precisamos também reconhecer que no meio da tragédia, infelizmente, veio também o pior de alguns: roubos, desvios, saques, o tráfico buscando marcar territórios, oportunistas no meio da tragédia buscando tirar vantagens para si, em vistas de ‘projetos pessoais’ futuros.
Merece, contudo, destaque, reconhecimento, gratidão a solidariedade de muitos. Rezo para que todos que de uma forma ou de outra se engajaram no socorro e atendimento das necessidades dos flagelados sejam recompensados não com o dobro, mas com a medida do Evangelho: cem vezes mais. É em situações semelhantes que se pode perceber em que consiste a humanidade do ser humano. Todo auxílio é, sim, sempre auxílio em favor de alguém. Mas é também expressão do que cada ser humano é, traz no seu interior, ou ‘construiu’ ao longo da própria existência.
Brasil de Fato: Como o senhor dialoga com o movimento dos padres que pedem a liberação do casamento e o fim do celibato? O Papa chegou a dizer que colocaria essa discussão na agenda da Igreja.
Este é um tema que sempre retorna. O celibato é uma norma disciplinar da Igreja de tradição latina, introduzida a mais ou menos mil anos. Neste horizonte poderia ser revisada, revogada. Trata-se de uma forma de vida que certamente exige disciplina, determinação, coragem, fé. É também, de algum modo, uma opção de vida.
Creio que se faz necessário promover espaços amplos de diálogo sobre este tema. É uma realidade que merece particular atenção. Há certamente na norma disciplinar aspectos positivos. Há também aspectos antropológicos que não podem ser desconsiderados num possível espaço de diálogo e estudo sobre o tema.
Na celebração do Sínodo da Amazônia se chegou a falar sobre este tema. Contudo, o debate não avançou. Imagino ser necessário coragem e parresia para avançar. Não se trata simplesmente de ser a favor ou contra. A ordenação sacerdotal é para sempre, mesmo quando o padre, por acaso, deixar a Igreja, pedindo dispensa das obrigações do ministério. Dentro da Igreja Católica, sacerdotes das igrejas que seguem ritos orientais podem contrair matrimônio. Por isso, não há contradição no caso de sacerdotes contraírem matrimônio.
Brasil de Fato: Por fim, como o senhor tem visto a resistência à agenda implementada pelo Papa Francisco, que prevê um maior engajamento da Igreja na luta pelo Meio Ambiente, aliança com movimentos sociais e uma agenda econômica crítica ao capitalismo.
A questão do cuidado pela “Casa Comum” envolve a todos, sem distinções. Uma pergunta que poderia nortear o engajamento nesta causa é a seguinte: que mundo desejamos deixar para as novas gerações. Não faltam sinais de que o Meio Ambiente está necessitado de atenção particular. E sou testemunha do quanto recentemente padecemos por isso [recordando as tragédias no RS].
A Conferência Nacional dos Bispos do Brasil possui um histórico de engajamento nessa causa. Bastaria aqui recordar o histórico recente das Campanhas da Fraternidade que tiveram como tema aspectos que compõem o Meio Ambiente e a necessidade de cuidado particular para com a Casa Comum. A Comissão Episcopal para a Ação Sociotransformadora tem uma excelente trajetória neste âmbito. Existe uma Comissão especial para a Ecologia Integral e Mineração que se dedica ainda mais especificamente sofre o tema em questão. No contexto latino-americano estão sendo constituídas redes de atuação em distintas âmbitos, como por exemplo, a Rede Eclesial Gran Chaco e Aquífero Guarani.
Para o próximo ano de 2025, a Campanha da Fraternidade promovida anualmente pela CNBB, com particular ênfase durante o período da Quaresma, terá como tema “Fraternidade e Ecologia Integral”, cujo lema será “Deus viu que tudo era muito bom” (Gn 1,31). Desejamos recordar com isso, que tudo está interligado e com isso o ser humano não pode se isentar dos cuidados com esta “casa comum”.
A cooperação entre as melhores forças da sociedade que acreditam na urgência de promover uma agenda consistente em torno do tema “Meio Ambiente”, “Casa Comum” é um imperativo. No próximo ano teremos, em Belém, a COP30 espaço privilegiado para estudos, debates possíveis e necessárias decisões sobre os desafios do clima. Esta será uma oportunidade privilegiada para que também as Igrejas expressem o engajamento nesta causa. Sendo o Brasil o anfitrião de tal evento, podemos afirmar que temos responsabilidade ainda maior; o Brasil também tem responsabilidades diante dos desafios que tocam a vida do planeta. Imagino que o legado de Francisco de Assis há de inspirar e auxiliar a todos para que não só redescubramos, mas verdadeiramente reconheçamos, respeitemos e promovamos a dignidade e o valor de toda criatura.
Brasil de Fato: O senhor acha que a Igreja no Brasil dialoga com essa agenda?
Com certeza. Se trata aqui de reconhecer que tal agenda faz parte da obra da evangelização. Nenhum batizado que se reconhece seguidor, discípulo de Jesus – “o homem que passou por entre nós fazendo o bem” e “que fazia bem todas as coisas” – pode, em sã consciência, afirmar que tal agenda não lhe diz respeito.
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Fato Novo com informações e imagens: Brasil de Fato
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